O ENIGMA DO INVISÍVEL
THE ENIGMA OF THE INVISIBLE
Bianca Dias
Tendo as pinturas de Caravaggio como ponto de partida, Manoel Veiga dissolve a imagem ao limite e toca a densidade do invisível. Eliminando cores e dando a ver vestes e dobras, ele ativa o vazio – o espaço cósmico entre uma coisa e outra – entre a presença e o gesto de apagamento, entre o visível e o invisível, entre a superfície e a profundidade. “Matéria escura” que irrompe da curvatura dos tecidos, reinventando corpos e espaços, reorganizando o ato de ver num gesto iconoclasta que provoca borramentos na representação da imagem, da figuração. No intervalo vivo e pulsante das coisas e nos espectros que vibram, há a fina contemplação do tremor do vazio.
Para o psicanalista Jacques Lacan, todos os modos de sublimação – religião, arte e ciência – visam o vazio. Dentre estes, Lacan designa um lugar distinto para a arte. Enquanto a ciência exclui e a religião nos mantém afastados do vazio central, a arte opera seu milagre de modo radicalmente diferente. Por uma estreita afinidade com o real e próxima dos insterstícios de onde se pode contemplar a perda ou a própria dissolução da imagem, a arte faz aparecer, para além da imagem, o vazio da Coisa. No gesto fundamental de Manoel Veiga na série “Matéria escura”, o que é visado não é, portanto, a imagem retratada, mas a obra como significante que delimita o vazio e que o estabelece como linguagem, matériaescura que indica na matéria visível a pulsação do real.
Na suspensão e no campo de gravidade dos corpos que se insinuam em suas pinturas, há um oco recortado no interior da estrutura, ponto que garante a abertura para o claro-escuro, convocando-nos a entrar em suspensão.
Através da imagem, a luz se distribui conforme o impacto do gesto pictórico, esparramando-se pelas dobras – que são também um acontecimento onde há ondulações da luz que emudece e adquire outros percursos – numa maneira singular de reescrever o corpo, a distorção do figurativo que não mais exerce uma função de organização e de contorno do real mas, antes, torna possível precisamente o encontro com o real, faz (o real) emergir, provoca-o, possibilita que uma fresta se abra, algo que indica um limiar – entre a vida e a morte, o homem e a animalidade, a loucura e a sanidade – em que nascer e perecer se repercutem mutuamente. Para Witold Gombrowicz, escritor e dramaturgo polaco, seria algo como um inacabamento próprio à vida, um estado embrionário em que a forma ainda não se revelou inteiramente e, mesmo assim, há uma atração irresistível que preserva, em estado de levitação, a liberdade de algo ainda por nascer.
Bearing the paintings of Caravaggio as his starting point, Manoel Veiga dissolves the image to its thresholdand grapples the density of the invisible. Eliminatingcolours and allowing vestments and folds to show through, he activates the void – the cosmic space between one thing and another – between the presence and the gesture of obliteration between the visible and the invisible, between the surface and depth. “Dark matter” that breaks throughthe curvature of fabrics, reinventing bodies and spaces, reorganising the act of seeing in an iconoclastic gesture that provokes smudging in the representation of the image, of figuration. In this living and throbbing intermission between things and vibrant spectres, there is a fine contemplation of tremor in the void.
For Jacques Lacan, the psychoanalyst, all modes of sublimation – whether religion, art, or science – seek the void. Between those three, Lacan designates a distinct place for art. While science excludes and religion keeps us distanced from the central void, art operates its miracles in a way that is radically different. Through its narrow affinity with the real and its closeness with the cleftswhere we can behold loss or the very dissolution of the image, art brings about, beyond the image, the void of the Thing. In Manoel Veiga’s fundamental gesture duringthe “Dark matter” series, the intent is not, therefore, the represented image, but the artwork as a signifierthat sets the boundaries between the void and establishes it as language, dark matter that indicates the throbbingof the real in visible matter.
In suspension and in the field of gravity of bodies that insinuate themselves in his paintings, there is a hollowness carved into the structure, a point that guarantees the opening into the chiaroscuro, summoning us to suspend ourselves.
Through the image, light diffuses itself according to the impact of the pictorial gesture, spreading over folds – which are also an event where undulations of light are muted and attain other routes – in a singular way of rewriting the body, the distortion of the figurative that no longer exerts the function of organisation and contour of the real, but, rather, makes possible, precisely, the encounter with the real, which makes (the real) emerge, provokes it, allows a glimpseinto it, something that beckonsa threshold – between life and death, man and animal, madness and sanity – where being born and perishing reverberate mutually. For Witold Gombrowicz, Polish writer and playwright, it would be something akin to the unfinished state that is inherent to life, an embryonic state where form still has not revealed itself entirely, and yet, there is an irresistible attraction that preserves, in a state of levitation, the freedom of something yet to be born.
No apagar ou reduzir a dimensão imaginária de uma imagem, Manoel Veiga recoloca em cena aquilo que está por nascer. E é o símbolo desse gesto de apagamento que divide a imagem, que também a sustenta e atravessa. Se o corpo em Caravaggio ambiguiza a forma, no trabalho de Manoel Veiga a escrita do corpo exibe o real, matéria escura.A luz, em Caravaggio, proporciona-lhe o traço diferencial cuja morfologia marcante é a luz-cor. Manoel Veiga retoma a ocupação espacial da luz de orientação oblíqua e o movimento do claro-escuro, apontando a dissolvência das formas e uma relação com o vazio.
Na perspectiva lacaniana, o vaso é um objeto feito para representar a existência do vazio no centro do real. A arte, indica Lacan, tal como a experiência da psicanálise, não evita nem obtura o vazio, mas contorna e cinge o vazio central das coisas, para extrair-lhes, precisamente, um sentido inédito, irrepresentável. A criação artística faz surgir o objeto sobre o vazio.
O que irrompe é um novo corpo: um corpo-vislumbre que, mesmo silencioso, se comunica, com muitas referências à luz, sombras, transparências. Corpo onde se faz da ausência uma aguda presença – boca, sangue, pele, rostos, coração, cérebro, sexo, dedos, ossos, carne, olhos, nervos. Maneira radical de escrever um corpo pela extração, como um delírio poético que transgride a ideia do corpo cartesiano e funcional para o corpo cósmico trágico, matéria escura.
Corpo cósmico, intervalar e descontínuo, contradição e tensão reinventada junto à matéria escura. Aqui é o gesto de apagamento que resgata o corpo, que cria um corpo enigmático que só se deixa entrever pela pulsação dos resíduos. O artista torna-se então um poeta e – como revela George Steiner, um dos mais importantes críticos literários do século XX, “o poeta cria à perigosa semelhança dos deuses” – dissipa ou constrói caminhos, reengendra o sentido místico da presença, dissecando a imagem como um exercício de encarnação.
Através da dobra e do insondável, Manoel Veiga opera uma espécie de resgate do invisível. A matéria escura se presentifica como estilo – um estilete a cortar e demarcar um espaço trêmulo, fazendo desaparecer a fronteira nítida entre luz e sombra, propondo uma passagem com ambas operando pela potência do inacabado, própria do barroco, que permite ligar pontos aparentemente distantes a partir da cintilação de uma expressão.
Embora reconheça uma dimensão inclassificável do trabalho de Manoel Veiga, a lembrança do barroco não é aleatória. Severo Sarduy, ensaísta cubano que estuda o tema, assinala a força do gesto que não visa obstruir completamente a luz com a sombra, apesar de colocá-las em contraste ou tornar indiscernível a passagem de uma à outra. Daí resultaria o brilho, o sol visto em eclipse, em zênite, o duplo centro, “sol sobre sol”, a presença que não é um estado, mas um vir a ser da presença num sentido imensurável.
In erasing or reducing the imaginary dimension of an image, Manoel Veiga repurposes in the scene that which is yet to be born. And it is the symbol of this erasing gesture that divides the image, and also sustains it and crosses through it. If the body in Caravaggio makes form ambiguous, in the work of Manoel Veiga the writing of the body exhibits the real, dark matter. The light, in Caravaggio, endows him with the differential trace, whose distinctive morphology is light-colour. Manoel Veiga recaptures the spatial occupation of light with an oblique orientation and the movement of the chiaroscuro, pointing out the dissolution of forms and a relationship with the void.
In the Lacanian perspective, the vase is an object made to represent the existence of the void at the centre of the real. Art, Lacan points out, just as the experience of psychoanalysis, does not avoid or seek to fill the void, but instead contours and encircles the central void of things, to extract from them, precisely, an unprecedented meaning, which is unrepresentable. Artistic creation gives rise to the object over the void.
That which breaks through is a new body: a body-glimpse, which, even though silent, communicates itself with many references to light, shadows, transparencies. A body that makes of absence a sharp presence – mouth, blood, skin, faces, heart, brain, genitalia, fingers, bones, meat, eyes, nerves. It’s a radical manner of writing the body through extraction, like a poetical delirium that transgresses the idea of a Cartesian and functional body into a cosmic tragic body, dark matter.
A cosmic body, intermittent and discontinuous, contradiction and tension reinvented intodark matter. Here, it’s the erasing gesture that rescues the body, that creates an enigmatic body that only allows us to glimpse it through the throbbingof residue. The artist becomes a poet as such, and – as George Steiner, one of the most important literary critics of the 20th century, revealed, the poet creates in a dangerous likeness to the gods – dispels or builds pathways, reengineeringthe mystic meaning of presence, dissecting the image as an exercise of incarnation.
Through the fold and the unfathomable, Manoel Veiga operates a kind of rescue of the invisible. Dark matter makes itself present as style – a stylus that cuts and sets boundaries over a trembling space, making the clear frontier between light and shadow vanish, proposing a passage through both of them operating through the power of the unfinished, inherent to the Baroque, which allows one to connect points that are apparently distant through the sparkle of an expression.
Although I recognise an unclassifiable dimension to the work of Manoel Veiga, the memoryof the Baroque is not random. Severo Sarduy, a Cuban essayist who studies the theme, signals the strength of the gesture that does not aim to obstruct light with the shadow completely, though placing them in contrast or making the passage of one towards the other indiscernible. That is where brightness comes through, the solar eclipse, in its apex, the double centre, “sun over sun”, a presence that is not a state, but rather a becoming of the presence in an immeasurable meaning.
A cosmogonia que Manoel Veiga apresenta é uma trama aberta desarticulando continuidades, permeada pelo insólito e pelo indiscernível do objeto, confundindo interno e externo, dentro e fora, privado e público, uma espécie de Santo Sudário que traz notícias do vestígio e do rastro, brilho intermediário da luz e da sombra, a partir do qual percebemos, como nas estrelas, sua melhor imagem: mesmo que já estejam extintas e não existam mais, continuam a chegar para nós seu brilho oscilante, sua faísca, sua sobrevivência, um texto-pintura que se coloca em dobras infinitas, em virtualidades/leituras infinitas que perpetuamente nos devolvem algumas perguntas essenciais: O que é imagem? O que é visibilidade? O que é a imagem da arte?
O artista opera uma verdadeira arqueologia sobre nossas maneiras de pensar e discorrer sobre o visível, da tradição ao gesto iconoclasta, tensionando olhar e pensamento, perseguindo sempre a imagem de uma alteridade e fornecendo a possibilidade de cada um construir seu próprio acesso à invisibilidade no visível.
É essa heterogeneidade, esse algo estrangeiro e estranho, oculto inclusive nas genealogias, que desloca qualquer fixação identitária, qualquer reflexo de um suposto “si mesmo” e abre a relação com o outro que está em jogo na ideia de uma matéria escura que é, antes de mais nada, exercício poético.
Ir à Caravaggio para dissecar as imagens “indecisas e indecidíveis”, resgatando a invisibilidade de um sentido sempre fugaz: não se partilha o visível sem construir o lugar invisível dessa própria partilha.
The cosmogony that Manoel Veiga presents is an open thread that disassembles continuities, permeated by that which is unheard ofand the indiscernible traces of the object, confounding internal and external, inside and outside, private and public, a kind of Holy Shroud that brings news of the track and the trail, an intermediate brightness between light and shadow, through which we perceive, as in the stars, its best image: even if they are already extinct and no longer exist, their flickering brightness still reaches us, their sparks, their survival, a text-painting that places itself in infinite folds, in infinite virtualities or readings that perpetually reflect back at us the essential questions: What is image? What is visibility? What is the image of art?
The artist operates a genuine archaeology over our ways of thinking and articulating about the visible, from tradition to the iconoclastic gesture, tensing the regard and thought, always pursuing the image of alterity and providing the possibility of each person building their own access to invisibility in that which is visible.
It’s this heterogeneousness, this foreignness and strangeness, concealed even in genealogies, that displace any fixation of identity, any reflection of an alleged “self” and open a relationship with the other, which is at play in the idea of a dark matter that is, before anything, a poetical exercise.
Going to Caravaggio to dissect “undecided and indecisive” images, rescuing invisibility from an ever-fleeting meaning: one does not share the visible without constructing the invisible place of this very act of sharing.
Gesto radical de encarnação à maneira que propõe a filósofa Marie-José Mondzain: “Encarnar não é imitar, reproduzir ou simular, mas operar na ausência das coisas”. Na aparição material de uma imaterialidade, de uma invisibilidade no visível, encarnar supõe uma distância libertadora que permite àquele que olha não confundir o que lhe é dado a ver com aquilo que deseja ver.
Se a imagem encarnada se constitui em três instâncias – o visível, o invisível e o olhar que os coloca em relação –, incorporar, por sua vez, é fazer apenas Um. Na disposição à encarnação, Manoel Veiga, quando vai à Caravaggio, recusa toda forma de incorporação, pois já parece saber, pela maneira como constrói seu trabalho, que o dispositivo de incorporação é fusional. Suas pinturas são como encarnações de uma “liberdade incerta e incessante” e, mesmo que não possa apagar completamente os ecos e reflexos do mestre italiano, ele faz um uso da transmissão que o reenvia à algo que lhe é próprio: seus espectros nas nervuras e nas sombras da imagem, a relação com o invisível e a coragem de pensar, no limite do sentido, a indeterminação de seu lugar de artista que coloca incessantemente em questão a potência do olhar e as estratégias do véu (que resguardam a invisibilidade e o aspecto movente dos sentidos).
Eis a máxima ambivalência da matéria escura e do gesto artístico de Manoel Veiga: encarnar uma “liberdade incerta” e, talvez, improvável, como a retratada no êxtase de Santa Teresa de Ávila, eternizado na escultura de Bernini, onde tudo parece flutuar, onde a gravidade cria um novo espaço cósmico: um glorioso desatino, uma celestial loucura.
It’s a radical gesture similar to what the philosopher Marie-José Mondzain proposes: “To incarnate is not to imitate, nor is to reproduce or to simulate. It is to act in the absence of things.” In the material apparition of an immaterial object, of an invisibility in that which is visible, to incarnate assumes a liberating distance that allows the one who sees to not mistake that which they are given to see with that which they want to see.
If the incarnated image constitutes itself in three instances – the visible, the invisible, and the sight that connects both – to incorporate, then, is to make One. In the disposition to incarnation, Manoel Veiga, when he revisits Caravaggio, refuses all form of incorporation, since he already knows, through the way in which he constructs his work, that the device of incorporation is fusion-like. His paintings are like incarnations of an “uncertain and unrelenting freedom” and, even if he cannot erase completely the echoes and reflections of the Italian master, he makes use of a transmission that sends him back to that which is inherent to his work: his spectres in the nerves and shadows of the image, the relationship with the invisible and the courage of thinking, in the boundaries of meaning, the indeterminacy of his place as an artist that incessantly puts in question the power of the regard and the strategies of the veil (that protect invisibility and the moving aspect of the senses).
This is the highest ambivalence of dark matter and of Manoel Veiga’s artistic gesture: incarnating an “uncertain freedom” and, perhaps, an unlikely freedom, as the one portrayed in the extasis of Saint Teresa of Ávila, eternalised in the marble of Bernini, where everything seems to fluctuate, where gravity creates a new cosmic space: a glorious folly, a celestial madness.
Bianca Dias é psicanalista, crítica de arte, autora do livro 'Névoa e assobio'. Fez história da arte na Faap e mestrado em estudos contemporâneos das artes pela Universidade Federal Fluminense.
Bianca Dias is a Brazilian psychoanalyst, art critic, and the author of 'Névoa and Assobio'. She graduated in Art History at FAAP and did a MA at Universidade Federal Fluminense.
Manoel Veiga trabalha com pintura e fotografia, tecendo um diálogo entre arte e ciência, com ênfase nas relações entre espaço e tempo e suas representações nos dois campos. Forma-se em Eng Eletrônica e dedica-se à arte em 1994. Estuda na Escola de Belas-Artes e na Escola do Louvre em Paris. Muda-se para São Paulo e estuda com Rodrigo Naves, Carlos Fajardo e Nuno Ramos. Recebeu bolsa da Fondation Thénot (França, 2005), Prêmio Flamboyant (Salão de Goiás, 2006) e o Prêmio “Mostras de Artistas no Exterior” (Bienal de São Paulo / MINC, 2010). Possui obras em instituições como o MAC USP, MAMAM Recife, MAC PR e MAC GO. Fez exposições em instituições e galerias como a Fundaj Recife, MAMAM Recife, Museu Oscar Niemeyer PR, Paço das Artes SP, Instituto Tomie Ohtake SP, MAC PR, Memorial da América Latina SP, MAC Sorocaba SP, MAC GO, MAC USP, Familie Montez Kunstverein (Frankfurt, Alemanha), Galeria Nara Roesler (São Paulo SP), Galeria Dengler Und Dengler (Stuttgart, Alemanha) e Galeria D’Est et D’Ouest (Paris, França).
Manoel Veiga works with painting and photography. He aims a dialogue between art and science, and higlights the relationships between space and time and their representations in both fields. He graduated in eletronic engineering, studied art at the École de Beaux Arts and École du Louvre in Paris. He moved to São Paulo and studied with Rodrigo Naves, Carlos Fajardo and Nuno Ramos. He got a scholarship from Fondation Thénot (França, 2005), and the Brazilian prizes Prêmio Flamboyant (Salão de Goiás, 2006) and Mostras de Artistas no Exterior (Bienal de São Paulo / MINC, 2010). He has exposed in the main museums, galeries and art institutions in Brazil, like for instance MAC USP, Museu Oscar Niemeyer PR, Paço das Artes SP, Instituto Tomie Ohtake SP, MAC PR, Memorial da América Latina SP, Galeria Nara Roesler (São Paulo SP). He also shown his work at Familie Montez Kunstverein (Frankfurt, Alemanha), Galeria Dengler Und Dengler (Stuttgart, Alemanha) and Galerie D’Est et D’Ouest (Paris, França).