refúgio
os deuses protegem meu corpo
como o tapume circunscreve a catedral gótica
múmias apoteóticas
via régia de papiros a.C.
refúgio do bardo pagão
na abóbada longe das trincheiras da revolução francesa
homens verdes urinam
de mármore, rezas, artilharia e gana
faz-se o caos
os deuses protegem meu corpo
irrevogavelmente politeísta
como os índios costuram
palmeiras nas ocas
espectros melífluos batizados no círculo mágico
desmistificação de aporias
jesuítas poluíram rios amazônicos com água benta
botos-cor-de-rosa engravidaram índias com sêmen europeu
os deuses protegem meu corpo
com o apetite irascível
dos elefantes africanos que
acossam as fêmeas
avançam com peso e presas
estraçalham carros e pessoas
trombas bramindo:
“afastem-se do que é meu”
haven
the gods protect my body
the same way boards surround the gothic cathedral
apotheotic mummies
via regia of papyrus from B.C.
haven of a pagan bard
in the canopy
far from the trenches of the french revolution
green men urinate
of marble, prayer, artillery and craving
chaos is made
the gods protect my body
irrevocably polytheist
like indians who sew
palm trees into their huts
honeyed specters baptized in the magic circle
demystification of aporias
jesuits polluted amazonic rivers with holy water
pink river dolphins have impregnated indian girls with european semen
the gods protect my body
with the irascible hunger
of african elephants that
harass females
they go forward heavy with tusks
shattering vehicles and people
roaring trunks:
“away from what is mine”.
além-vida
o jabuti e a vira-lata descansam ao sol
o cheiro da grama cortada
é um lisérgico
nostálgico que tortura
em algum outono a alegria
deve ter habitado minhas falanges otimistas —
agora tão raras
as sardas alaranjadas da tartaruga
dão-lhe charme ancião
o olhar apaixonado da cadela
angaria-me motivos
para não me lançar à Morte
— essa dama bissexual que desfila
de vestido preto e perfume Givenchy
desejos secretos que o cobrador de ônibus não imagina
o próximo biarticulado a quase 100 km/h
uma das barcas de Hades
a sacada, que já abrigou amantes
clandestinos no colchão
bode expiatório de Ana Cristina Cesar
curiosidade felina de poder vivenciar sete mortes distintas
[paixão, cicuta, revólver, oceano, penhasco, trilho de trem, cianureto]
corpo humano frágil como as esposas do joão-de-barro:
nasce do sexo, respira do tapa
e morre, indubitavelmente, do coração
afterlife
the tortoise and the mutt lay in the sun
the smell of mown grass
is a nostalgic lysergic
that tortures
in some autumn, the joy
must have inhabited my optimistic phalanxes
– now such a rarity
the tortoise's orange freckles
give it an ancient appeal
the passionate look in the eyes of the female dog
finds me reasons
for not throwing myself into Death
– this bisexual damsel who dons
a black dress and wears Givenchy perfume
secret wishes the fare collector can't imagine
the next bus at almost 100km/h
one of the boats of Hades
the balcony that sheltered
clandestine lovers on a mattress
Ana Cristina Cesar's scapegoat
feline curiosity to experience seven different deaths
[passion, hemlock, gun, ocean, cliff, train tracks, cyanide]
human body, fragile as the wives of the ovenbird:
born from sex, breathes from a slap
and dies, undoubtedly, of a heart condition
Ondina emascula Héracles
vestida de Jane Birkin
olhava a Lua curvilínea
o que fazer para que me vejam em forma de mulher?
aquele órgão horroroso
balançando como um galo
penudo-penoso, pendurado pelos pés
no púbis que se reconhecia concha prateada
ou estrela-do-mar
encheu os bolsos com xisto
jogou-se nos braços de Netuno
o corpo revirado, entorpecida marionete tépida
bruma de algodão e látex
a calcinha escondia as uvas pestilentas
adubo para um Baco-larva
o que fazer para que me vejam em forma de mulher?
com seios escamosos e brilhantes
e um cajado de anêmonas
Melusina aproximou-se
Transformo serpentes em fendas
macias como moluscos
cheirosas como areia do mar
alforria rumo ao centro cirúrgico: Eva arrancando com os próprios dentes
os pomos de Adão
Ondine emasculates Heracles
dressed up as Jane Birkin
looking at the curvaceous moon
what should I do so they see me in the shape of a woman?
that hideous organ
swinging like a rooster
painful-feathered, hung by the feet
on the pubis which saw itself as a silver shell
or a starfish
filled her pockets with shale
threw herself into Neptune's arms
the body sprained, numb tepid marionette
latex and cotton mist
the panties hiding the pestilent grapes
fertilizer for a Bacchus-Maggot
what should I do so they see me in the shape of a woman?
with breasts squamous and bright
and an anemone stick
Melusine came closer
I turn snakes into crevices
soft as mollusks
perfumed as sea sand
emancipation heading to the operation room: Eve tears
Adam's apple with her own teeth
Priscila Merizzio
Translated by Beta and Luci Rivka
Illustration: Alasdair
Priscila Merizzio é curitibana. Tem outros dois livros de poemas publicados: Minimoabismo (ed. Patuá, 2014), semifinalista do Prêmio Oceanos 2015 e Ardiduras (ed. 7Letras, 2016). Mestre em Estudos de Linguagens pela UTFPR, com o tema de pesquisa: Matizes surrealistas no poema "O Amor em Visita", de Herberto Helder (2019) e sócia-fundadora do projeto literário Pulmões Versos.
Priscila Merizzio was born in Curitiba, Brazil. She has two book of poems published curitibana: Minimoabismo (ed. Patuá, 2014), nominated for prize Oceanos 2015 in Brazil, and Ardiduras (ed. 7Letras, 2016). She has a masters dregree in language studies by UTFPR on the work of Portuguese poet Herberto Helder. She is one of the of founders of literary project Pulmões Versos.