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Writer's pictureVirna Teixeira


DoDa aux Champs Exylées - Virulismo e Virtualismo


DoDa aux Champs Exylées - Virulism and Virtualism





Em 1453 Constantinopla foi sitiada pelos otomanos, e para quem ainda tinha dúvidas ficou claro que o que restava do Império Romano já não existia mais. Consolidava-se a desconexão entre um sistema institucional e a sua representatividade na figura do imperador Constantino XI. A civilização ocidental ainda vivia no que hoje chamamos de idade média; mas já dava passos largos ao que chamaríamos tempos modernos, consolidados historicamente com a revolução francesa e economicamente com o estabelecimento do que veio a ser conhecido como capitalismo.


Seis séculos depois, o que sobrou do imaginário de Roma, a Península Itálica, permaneceu sitiada por meses. Desta vez não foram guerreiros guiados por uma promessa do profeta Maomé, e sim pela invasão de uma partícula invisível, trazida nos corpos de inocentes viajantes do tempo, pessoas capazes de deslocar suas mentes em frações de segundos por qualquer parte do mundo em suaves toques sobre um cristal líquido, ou comandando verbalmente algoritmos robóticos no mais das vezes com nomes femininos.


O Corona Vírus ainda é mais lento que o pensamento viajante dos humanos, mas o rastro que o seu medo provoca segue na velocidade das radiofrequências; e o pânico prenunciado se realiza pandemicamente em uma trilha que se inicia em Wuhan e termina bem aqui, em qualquer ponto da terra onde haja o que ainda nos consideramos – humanos. Humanos, no plural, isso é o que somos, seres relacionados a morcegos, se não por sermos ambos mamíferos e igualmente suscetíveis ao Corona, pelo menos por sermos mitologicamente conectados. Humanos do século XXI, seres quase vampiros que já vivemos mais do triplo do tempo que seria esperado para um homem comum, quando as muralhas supostamente invencíveis de Constantinopla não mais resistiram aos invasores do temível leste.


Desesperados, nós, homens e mulheres vampiros percebemos que desaprendemos a morrer, como há seis séculos ainda o sabíamos; porém reagimos como se ainda não houvesse caído Constantinopla. Já são muitos aqueles que desejam morrer mais rápido e aceleram seus encontros com o destino; e centenas de milhares de outros, normais, cujo destino se apressou em encontrá-los. Desaprendemos a morrer como se morria antes, supondo que a morte seja algo que se aprende. Sempre foi assim dizem alguns. Como pode ser assim? Lamentam outros. E há quem diga que isso seja a providência. E continuamos a morrer como se morria antes - deixando sonhos como herança, e dores como dívidas. Recordamos a Peste como se houvesse sido ontem. Acreditamos que nossas muralhas virtuais serão capazes de nos proteger do inimigo. O medo do vírus, que poderíamos chamar de Virulismo, testa e promove como jamais visto uma onda que já avançava no mar vazio do desespero. Esse oceano da contemporaneidade líquida, onde a ordem de poucos contatos físicos se torna o mantra de uma felicidade postergada.


In 1453 Constantinople was besieged by the Ottomans, and for those who still had doubts it became clear that the leftover of the Roman Empire no longer existed. The connection between an institutional system and its representation in the figure of Emperor Constantine XI was broken. Western civilization still lived in what we now call the middle ages; but it was already taking large steps in what we would labe Modern Times, consolidated historically with the French revolution and economically with the establishment of what came to be known as capitalism.


Six centuries later, what was left of Rome's imaginary, the Italian Peninsula, remained under siege for months. This time, not by warriors guided by a promise from the prophet Muhammad, but by the invasion of an invisible particle, carried in the bodies of innocent time travelers - people capable of moving their minds around the world in fractions of seconds by softly touching crystal-liquid screens, or verbally commanding robotic algorithms most often with girl names.


The Corona Virus is still slower than wandering human thoughts, but the trail their fear creates moves at the speed of radio frequencies; and the foreshadowed panic takes place pandemically on a road that begins in Wuhan and ends right here, anywhere on earth where there is still what we consider ourselves to be - humans. Humans, plural, this is what we are, beings related to bats, if not because we are both mammals and equally susceptible to the Corona, at least because we are mythologically connected. Humans of the 21st century, almost vampires who live now more than three times as long what would be expected for an ordinary man, when the supposedly invincible walls of Constantinople no longer resisted the invaders of the feared East.


We, desperate vampires, men and women realize that we have unlearned how to die, as we knew six centuries ago; although we react as if Constantinople had not yet fallen. There are already many who wish to die faster and accelerate their encounters with the destiny; and hundreds of thousands of others, normal ones, whose fate hurried to find them. We unlearn how to die as we did before, assuming that death is something one can learn. It has always been like that, argues some. How can that be? Ask others. And some say that this is providence. And we continue to die as we use to die before - leaving dreams as bequests, and pains as debts. We remember the Plague as if it was yesterday. We believe that our virtual walls will be able to protect us from the enemy. The fear of the virus, which we could call Virulism, tests and promotes as never before seen a wave that was already advancing in the empty sea of ​​despair. This ocean of liquid contemporaneity, where the order of few physical contacts becomes the mantra of a postponed happiness.




Em substituição àcópula, nossa atenção cada vez mais se concentra em órgãos semimasturbatórios chamados celulares; enquanto embriões são fertilizados assepticamente em tubos de laboratório. Tubos plásticos primo-irmãos daqueles que trabalham intensamente na contenção da pandemia por meio de uma santa vacina. Confinar progressivamente bilhões destes corpos frágeis não impede felizmente que suas mentes continuem se teletransportando em circuitos de paixões virtualizadas.


Para quem tinha dúvidas, já não sobra mais quase incertezas. COVID-19, uma vilã há alguns meses ainda desconhecida, assume a paternidade de um mundo de meias verdades. Seu filho se chama virtualismo.


Linguística e dialeticamente pensando, não deixa de ser intrigante observar que o advento do Corona até agora produziu, de um lado centenas de milhares de DEATHs de pessoas absolutamente únicas e insubstituíveis, e do outro, um número incontável de LIVEs questionavelmente autênticas.


O tal mundo “real” não para, e o “virtual” só acelera. Nesse descompasso, quase ninguém mais consegue olhar quem está ao lado, ou mesmo a frente, e muito menos os que ficam para trás. Tudo o que interessa está na tela, para ela é produzido, e nela se consome. As pessoas, inclusive as mais queridas vão se tornando imagens, sem cheiro nem tato; porém, coloridas que são, conseguem facilmente através de um cabo óptico ou espalhadas pelos ares penetrar no vácuo de cada outra, e assim logo desaparecem, como se fossem uma essência.


As a substitute for mating, our attention is increasingly focused on semimasturbatory organs called cell phones; while embryos are aseptically fertilized in laboratory tubes. First-brother plastic tubes of those who work hard to contain the pandemic by means of a holy vaccine. Progressively confining billions of these fragile bodies does not fortunately prevent their minds from continuing to teleport through circuits of virtualized passions.


For those who had doubts, there is no longer almost any uncertainty left. COVID-19, an unknown villain a few months ago, assumes the paternity of a world of half truths. It’s son is called virtualism.


Linguistically and dialectically thinking, it is intriguing that the advent of Corona has so far produced, on the one hand, hundreds of thousands of DEATHs of absolutely unique and irreplaceable people, and on the other, a countless number of questionably authentic LIVEs.


The “Real” world does not stop, and the “Virtual” only accelerates. In this mismatch, almost nobody can look at who is around, or even in the front, let alone those who are left behind. Everything that matters is on the screen, for it is produced, and consumed on it. People, even the most beloved ones, become images, without smell or touch; however, colored as they are, they easily reach through an optical cable or spread through the air to penetrate the vacuum of each other, and so they soon disappear, as if they were an essence.




Por que seria preciso construir equipamentos que triangulam o universo procurando buracos negros, quando cada pessoa já tem um deles em si mesma para chamar de seu? Grande enigma dos vivos que as Lives parecem buscar resolver.


As Lives são dos últimos modelos no vasto mercado de teletransporte, dos mais impressionantes já produzidos desde a percepção do tempo racional. Para muitos humanos, o primeiro e mais revolucionário entre os teletransportes poderia ser creditado a Adão na porta do Éden, ou talvez teria sido construído por Eva, para que ela pudesse justamente escapar dali levando Adão. Para muitos outros, teria sido revelado a Buda. E para uma parte, teria sido a alavanca que conseguiu arrancar da caverna o Homem de Platão, depois que esse já havia recebido de Prometeu o fogo que o destruiria. E há muitas outras histórias que contam essa origem, sem jamais dar conta dela. Mas esse começo importa pouco para quem participa de uma Live, que só vale a pena se for vivida aqui e agora, dentro deste não lugar onipresente, ou então já nasce morta. Amar a vida é preciso, e é preciso ainda mais poder se amar. Amar corporalmente. E quando isso se faz difícil, é mais fácil corporizar o limite de nosso ser. Ou não seria por essa razão que prazerosamente costuramos a tela líquida no limite de nosso eu, que tecemos conjuntamente essa potente máscara que nos protege e protege quem amamos? A máscara do Virtualismo nos protege de vírus biológicos, enquanto nos expõe a trojans venéreos e Fakelovers, e nos condiciona a uma orgia quântica de privacidade quase ausente. O rei eu está nu!


Why would it be necessary to build equipments that triangulate the universe looking for Black Holes, when each person already has one of them in himself to call his own? Great enigma of the living that Lives may seek to solve.


Lives are one of the latest models in the vast teleportation market, the most impressive ever produced since the perception of rational time. For many humans, the first and most revolutionary of teleports could be credited to Adam at the gate of Eden, or perhaps it would have been built by Eve, so that she could just escape from there taking Adam with her. For many others, it would have been revealed to Buddha. And for a part, it would have been the lever that managed to pull Plato's Man out of the cave, after he had already received the fire that would destroy him from Prometheus. And there are many other stories that tell this origin, without ever giving an account of it. But this beginning matters little to anyone who participates in a Live, which is only worthwhile if it is lived here and now, inside this non-omnipresent place, or else it is stillborn dead. Loving life is necessary, and it is even more necessary to be able to love oneself. Love bodily. And when this becomes difficult, it is easier to embody the limit of our being. Or is it not for that reason that we delightfully sew the liquid canvas on the edge of our Self, that we weave together this powerful mask that protects us and protects those we love? The mask of Virtualism protects us from biological viruses, while exposing us to venereal Trojans and Fakelovers, and it conditions us to an almost quantum orgy of absent privacy. The king I is naked!




Máscaras para que te quero? Passei a refletir mais profundamente sobre elas nesses longos meses, desde quando, em meia volta volver, o Ocidente veste burca. Quando a sirene deste enorme barco sem comandante tocou o sinal de alarme, segui o protocolo emergencial da liberdade, do que me restava dela quero dizer - eu sou daqueles que ainda sonham com ela, como se sonhava antes da queda de Constantinopla. Juntamente com meu grande amigo e vizinho Domenico desembarcamos em uma ilha. Chegamos num lindo sítio pleno de verde, ao qual dei o nome de Champs Exylées. De lá víamos aterrorizados, mesmo que protegidos, o mar comer fragatas inteiras no horizonte. Até que um dia, eureca, como se estivesse de nove meses, nasceu DoDa, uma colaboração criativa no meio daquela ilha, que poderia ser perdida, onde estávamos determinados a nos achar. E como tudo que nasce desejado, ou não, pede amor, nossos olhos e corações se voltaram para essa fantasia - experimentos visuais feitos durante a quarentena, girando em torno de um fazer que tentava se tornar saber - buscamos vivenciar esteticamente um novo corpo eticamente virtualizado, com suas máscaras. Essas máscaras, fossem elas reais ou metafóricas, começaram a enredar enigmas que sempre criavam outros a cada deciframento; e para os quais talvez não haja respostas.


Masks for what I want you? I began to reflect more deeply on them in these long months, since when, in a half-turn, the West wears burqa. When the siren of this huge boat without a commander rang the alarm signal, I followed the emergency protocol of freedom, of what I had left of it I mean - I am one of those who still dream of it, as it was before the fall of Constantinople. Together with my great friend and neighbor Domenico we landed on an island. We arrived at a beautiful place full of green, which I named Champs Exylées. From there we saw terrified, even if protected, the sea eating whole frigates on the horizon. Until one day, eureka, as if she were nine-month ready DoDa was born, a creative collaboration in the middle of that island, which could be lost, where we were determined to find ourselves. And as everything that is born, desired or not, asks for love our eyes and hearts turned to this fantasy - visual experiments made during the quarantine, revolving around a doing that tried to become a knowing - we sought to aesthetically experience a new ethically virtualized body, with its masks. These masks, be they real or metaphorical, began to weave enigmas that always created others with each deciphering; and for which there may be no answers.



Eu sou meio médico - não apenas como todos os loucos - tenho diploma, passei por um ritual que me autoriza legalmente a afirmar que sou médico de verdade, mas sempre me recusei a sê-lo por inteiro, mesmo que quando atue medicamente o faça sem meio termos. Eu me acostumei desde muito jovem a trabalhar com máscaras de proteção física. E assim fui levando e me deixando levar pela vida. Carregado por correntezas às vezes, e dando algumas braçadas outras, me fiz especialista em modificações corporais. No início, não sabia que nessa atuação estaria entrando em labirintos - cujas paredes eram os afetos para os quais a corda da racionalidade só consegue tecer proteções muito frágeis.


Aprofundei-me muito, e com grande dedicação, à interface física e biológica das faces, praticando intervenções estéticas medicalizadas, sobre e dentro das caras. Os rostos são fronteiras pessoais e simbólicas, que separam (ou conectam, como se queira dizer) máscara pública e personalidade. O rosto também promove sua fusão na identidade dos espelhos, sejam eles visuais ou psíquicos, de prata, cristal líquido, ou aqueles que refletem imagens puramente subjetivas.


I am a bit of a doctor - not just like all crazy people - I have a certificate, I went through a ritual that legally authorized me to claim that I am a real doctor. But I have always refused to be a full doctor, notwithstanding when I act medically I do it without half terms. I got used to working with physical protection masks from a very young age. And so I went on and on and on with my life. Loaded by currents at times, and taking a few other strokes, I became an expert in body modifications. At first, I didn't know that in this performance I would be entering labyrinths - whose walls were the affections for which the rope of rationality can only weave very fragile protections.


I went very deep, and with great dedication, to the physical and biological interface of peoples veneer, practicing medicalized aesthetic interventions, on and inside the skin. Faces are personal and symbolic boundaries, which separate (or connect, as it were) public mask and personality. The face also promotes its fusion in the identity of the mirrors, whether they are visual or psychic, silver, liquid crystal, or those that reflect purely subjective images.



Em seu rosto cada pessoa é um universo, e por isso mesmo o clichê se transcende. Em muitos lugares esses universos se separam de outras dimensões pelo que podemos figurativamente chamar de máscaras. Os corpos já nascem como máscaras de outras máscaras que dificilmente se materializariam sem elas. Somos ao mesmo tempo seres únicos e completamente moldáveis aos nossos tempos. Só conseguimos existir enquadrados, e só podemos nos expressar livremente porque nos apresentamos modificáveis. O imperativo imposto pela condição de pandemia é um desafio de liberdade. Que ética se revela, ou se mascara, esteticamente em tampar a cara no contexto dessa calamidade? Aprenderemos definitivamente a usar máscaras para cobrir boca e o nariz em público, espaço sagrado da exposição? Esse uso, falo não só por mim, neste momento, é absolutamente responsável e recomendável, mas deveria ser compulsório? Burkar ou não burkar? Essa não é a questão!


In one's face each person is a universe, and that is why the cliché is transcended. In many places these universes are separated from other dimensions by what we can figuratively call masks. Bodies are already born as masks of other masks that would hardly materialize without them. We are at the same time unique beings and completely mouldable to our times. We can only exist framed, and we can only express ourselves freely because we present ourselves as modifiable. The imperative imposed by the pandemic condition expresses itself as a freedom challenge. What ethics is revealed, or masked, aesthetically in covering the face in the context of this calamity? Will we learn to use masks to cover mouth and nose in public, sacred space of the exhibition? Using masks, I speak not only for myself, at this moment, is responsible and recommendable, but should it be compulsory? To Burqa or not to Burqa? That is not the point!



A liberdade só consegue conviver bem com coberturas facultativas, mas também invioláveis, sejam elas de rosto (e dessas há e sempre houve inúmeras) ou aquelas para esconder o restante, até as chamadas "vergonhas", tanto do corpo privado quanto do político; e consequentemente dos infindáveis espaços intermediários, passíveis de serem produzidos pelo derretimento ou sublimação da já tênue fronteira que delimitava os conceitos de público e privado, neste agora de grandes transformações mediadas pelo Virtualismo.


Equipamentos de proteção virtualizados são apenas metáforas para máscaras mais profundas, aquelas dos pensamentos, e dos afetos. Como esconder o medo com uma máscara que em si já é sua revelação? Como mostrar a coragem sem mascarar os medos que a sustentam? Como amar de máscara? É possível amar sem elas? O que vem a ser expor-se em público, quando quase tudo que essa dimensão hoje abarca só pode ser medido pela interface mascarada de dados digitalizáveis? No mais das vezes processados em completo isolamento.


Quais estéticas e quais éticas se produzem pelo implante em nossos corpos e mentes dessas camadas, desse Clotho que nos costura em dados, e deste novo órgão ao mesmo tempo cartesiano e libidinoso chamado celular? Eram essas perguntas que alimentavam DoDa, e assim foram crescendo juntas feito o Oroboro. Cada nova pergunta dando muito pano para máscara.


Freedom can only survive with facultative but also inviolable coverings, be they faces (and of those there are and there have always been countless ones) or those to hide the rest, even the so-called "shame". Covers of the private and political bodies. Consequently, from them derives the endless intermediary spaces, which can be produced by the melting or sublimation of the already tenuous frontier delimiting the concepts of public and private. All that enclosed in this Now of great transformations mediated by Virtualism.


Virtualized protective equipments are just a metaphor for deeper masks, those of thoughts and affections. How to hide fear wearing a mask that is already its revelation? How to show courage without masking the fears that support it? How to love wearing masks? Is it possible to love without them? What does it mean to be exposed in public, nowadays, when almost everything inside the public dimension can only be measured by the masked interface of digitizable data? most often processed in complete isolation.


What aesthetics and ethics are produced by the implant in our bodies and minds of these layers, this Clotho that sews us into data, and this new Cartesian and libidinous organ called cell phone? It was these questions that fed DoDa, and so they grew up together like the Oroboro. Each new question producing a lot of mask cloth.




Como sabiamente disse Isak Dinesen, todas as “dores podem ser suportadas se você puder colocá-las numa história, ou contar uma história sobre elas”. Na estória de DoDa, a contingência nos obrigou a abandonar os Champs Exylées e embarcar no bote mais próximo. Três meses de vida não cabem na mala. O passado nunca cabe na mala. E nesses barcos do fim do mundo não há espaço para grandes bagagens; já estão todos lotados de desamor. Não tem outro jeito, para caber tanta gente junta, solicita-se aos passageiros que tirem toda a roupa. A nudez é a roupa mais justa, quando não aperta, seu apelido é liberdade. Mas hoje só se permite assistir ao fim do mundo de máscara. DoDa foi a nossa máscara mais frouxa. Através dela respiramos outros ares, e assistimos o desmascaramento desta nova Viturrealidade. Porém observar não é viver. Com ou sem Lives, a dor só pode ser contada quando vivida.


Força na Máscara!


As Isak Dinesen wisely said, all "sorrows can be borne if you can put them into a story or tell a story about them". In DoDa's story, contingency forced us to abandon the Champs Exylées and board the nearest boat. Three months of life don't fit in the suitcase. The past never fits in the suitcase. And in these end-of-the-world boats there is no room for large luggage; they are already full of disaffection. There is no other way, to fit so many people together, passengers are asked to take all their clothes off. Nudity is the fairest outfit, if not tight I call it freedom. But today you can only watch the end of the world wearing masks. DoDa was our loosest mask. Through DoDa we have breathed other airs, witnessing the unmasking of this new Viturreality. But, to observe is not to live. With or without Lives, pain can only be told when felt.


Hope in the Mask!


Davi de Lacerda


Translated by Artificial Intelligence Algorithm under Davi’s oversight

PHOTOS by Davi de Lacerda & Domenico Salas

Davi de Lacerda, 48 anos, mora em São Paulo, é médico dermatologista; estuda Ciências Sociais; gosta de escrever, fotografar, criar, ver e viver o mundo do seu jeito.


Domenico Salas, mora em Sao Paulo, artista visual, designer e produtor gráfico com trabalhos expostos em midias impressas ( Vogue, Zupi e Photo). Expôs em coletiva no Museu AfroBrasil, Galeria Paralelo e Tato galeria, projeto autoral Patologico no site www.domenicosalas.com.br

Davi de Lacerda, 48, lives in São Paulo, dermatologist, currently pursuing a bachelor's degree in Social Sciences. Davi likes to write, photograph, create, see and live the world in his own way.


Domenico Salas, lives in Sao Paulo, visual artist, designer and graphic producer with works displayed in printed media (Vogue, Zupi and Photo). Collective exhibition at the AfroBrasil Museum, Galeria Paralelo and Tato Galeria. Authorial project Pathologico dysplayd on the website www.domenicosalas.com.br


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(Foto: Paulo Faria)


Sonho com renhidas batalhas microscópicas


Paulo Faria


Sonho com renhidas batalhas microscópicas, exércitos de células a desembarcar numa praia amarela, diante das altas muralhas de uma cidade. Esta minha Ilíada passa-se no teu corpo, no gânglio sentinela da tua axila direita, e os sitiados vencem, escorraçam os intrusos. Não há no meu sonho a argúcia de Ulisses, não há cavalo de Tróia.


O cirurgião mandou-te despir da cintura para cima e puxou um biombo com rodas para vos ocultar a meus olhos, a ti e a ele. Desviei o rosto, incomodado por outro homem dispor assim de ti. Também nos modos dele perpassou um ligeiro incómodo, um vago constrangimento de fundo que os anos de experiência não conseguiram dissipar. Mais tarde brinquei com a situação, disse-te que a tua doença não passa de um embuste, é uma conspiração dos médicos para te verem as mamas, tão belas. Disse-te que eles estão todos coligados e passam palavra uns aos outros. E que tu, tão ingénua, cais sempre na esparrela. Fiz-te rir e passei aquele dia ocupado a repetir e a adornar o gracejo, sabendo que no dia seguinte já não teria piada e que seria preciso começar tudo de novo para te distrair.


A própria expressão, «gânglio sentinela», evoca guerras e cidades sitiadas. Os Romanos matavam à paulada as sentinelas que adormeciam no seu posto. Eram os camaradas do faltoso que executavam a sentença, como quem pune uma traição. Quando recebeste a notícia, disseste-me que sentias que o teu corpo te tinha traído. Nos primeiros tempos do nosso amor disseste- me uma vez: «Sou muito saudável.» Como se dissesses: «Sou de confiança, não te vou deixar ficar mal. Não serei um peso para ti.» Mas agora o teu corpo traiu-te, o gânglio sentinela adormeceu no seu posto. O teu próprio corpo ameaça tornar-se um peso para ti, ameaça reger toda a tua existência. Ameaça escravizar-te. Disseste-me: «Não quero passar a ser uma daquelas mulheres que arrastam consigo um fardo, um apêndice a ocupar espaço, a incomodar toda a gente com a sua presença: “Eu e o meu divórcio.” Ou: “Eu e os meus cães.” No meu caso vai ser: “Eu e o meu cancro.” Não quero isso. Quero continuar a ser só eu.» Disseste-me que não te compenetraste realmente do diagnóstico quando ouviste a palavra «cancro» da boca dos médicos. A palavra «cancro» era um caroço de fruta, uma grainha que cuspias para a palma da mão antes de a deitares no prato. Só acreditaste mesmo que tinhas um cancro quando leste o diagnóstico numa carta do IPO: «carcinoma invasivo, com padrão de crescimento de tipo lobular». Resististe à palavra «cancro» enquanto pudeste, só cedeste quando já não havia como repeli-la, e então recuaste para a trincheira da segunda linha. Vais dinamitando tudo à medida que bates em retirada. Não deixas ao cancro nada de que se possa alimentar.


O carteiro perdera há muito a importância, tornara-se uma figura obsoleta, pitoresca. Semanas a fio, ignorávamos a caixa de correio. De súbito, o carteiro tornou-se outra vez o carteiro de antigamente. Toca à porta por volta das onze da manhã, meio-dia. Sei que é ele, porque toca para vários andares, faz soar as campainhas do prédio em cânone. Carrego no botão do trinco, ouço-o a entrar no prédio, fico à escuta do ruído abafado das cartas a deslizarem nas ranhuras. Espero que ele saia e desço logo, a verificar se há alguma carta do IPO. O teu cancro tornou-me mais grave, menos ligeiro. Já não posso fazer de conta que o carteiro não existe. Já não posso fazer de conta que o teu corpo é perene, que o tempo não passa por ti, que não ardes em lume brando como toda a gente.


As mãos tremeram-te na primeira consulta com o cirurgião do IPO. Fizeste-me lembrar uma iraquiana sunita da tua idade que vi num documentário sobre a guerra contra o Estado Islâmico. Os soldados da milícia xiita entraram em casa dela e a câmara filmou-a de pé, no meio da sala, rodeada pelos filhos, a segurar nas mãos uma grande bandeira branca improvisada com um lençol, e as mãos tremiam-lhe, convulsas, como as tuas, e a voz ficou-lhe presa na garganta, assim como a tua quando perguntaste se te iam tirar o mamilo. O cirurgião disse que não. Tranquilizou-te, assim como os soldados xiitas tranquilizaram aquela mulher: «Não tenha medo, minha senhora. Não tenha medo.» Pareceste momentaneamente indefesa. Recompuseste-te, incomodada por teres cedido ao pânico, perguntaste-lhe quando é que vais ser operada. Ele não sabia a data, ainda era cedo para isso. Aquela foi só a primeira consulta, era preciso esperar pela carta com a marcação da consulta «para decisão cirúrgica». Mas ele disse que o teu tumor é pequeno, que cresce devagar. «Num ano, cresce um milímetro, se tanto.» Agora, no meu sonho, a cidade de altas muralhas deixou de ser o gânglio sentinela, passou a ser o tumor, na areia amarela desembarca o teu exército de células. Precisamos novamente da argúcia de Ulisses, precisamos do cavalo de Tróia. A cidade expande-se aos poucos, há quem construa casas encostadas à muralha, do lado de fora. Um milímetro por ano.


Dois auxiliares vestidos de branco, um homem e uma mulher, entraram na sala de espera do IPO com um carrinho de comes e bebes gratuitos, perguntaram às pessoas se queriam chá, café ou laranjada. O homem foi de lugar em lugar, a distribuir rebuçados, dois a cada pessoa, como se fôssemos crianças numa festa de aniversário. O cancro, como todas as doenças, procura infantilizar-nos para melhor nos subjugar. Recusaste delicadamente, não estavas preparada para te confundir com os outros doentes, que desembrulharam um dos rebuçados com um crepitar translúcido antes de o meterem na boca e guardaram o outro no bolso ou na malinha. Aquele chá, aqueles rebuçados são um ritual iniciático. Haverá tempo para isso, quando todos os outros caminhos estiverem tapados.


Há mulheres carecas, com turbantes de marajás. Há um homem com um tubo em volta do rosto, numa curva arrojada. Dir-se-ia o fio de uns auscultadores para ouvir música, mas depois reparo melhor e é um tubo transparente a sair-lhe do nariz, colado com adesivo. Há uma mulher com uma pala de gaze a tapar um olho. Há pessoas com estranhas válvulas na garganta, como se fossem latas de abertura fácil. Há os corpos expostos, devastados. Entro neste estranho mundo com cautela, pé ante pé, sentindo que sou posto à prova. Não sei onde pousar os olhos, não sei como olhar estas chagas. De noite, não sei o que sonhar acerca destas pessoas, não sei que histórias compor para as resgatar do sofrimento. Tento aprender com estes padecentes a melhor maneira de lidar com o que aí vem, observo-os discretamente em busca de sorrisos, espio a maneira como os cônjuges, sentados ao lado dos cancerosos, lhes falam, procuro que não me escapem os gestos de carinho mútuos. Tu caminhas entre eles como se fosses um viajante estrangeiro longe de casa, num país cuja língua não domina, alguém que está apenas de passagem, que não se vai demorar.


Na consulta para decisão cirúrgica havia três cirurgiões na sala. O mesmo cirurgião da primeira consulta, sessenta e tal anos, e um rapaz e uma rapariga, muito novos. O consultório era o mesmo da outra vez, acanhado, com um lavatório a um canto. O cirurgião tornou a mandar-te despir da cintura para cima, tornou a puxar o biombo rolante. O biombo era forrado de um tecido azul, vi-te a cabeça a assomar acima do rebordo, como no caminho de ronda de uma barbacã. Não me ocorreu nenhum novo gracejo para guardar na memória e, mais tarde, amenizar o sucedido. A rapariga olhou para o ecrã do computador e disse: «A biópsia foi a dez de Maio, não foi?» Entreolhámo-nos, disseste «não sei ao certo», eu disse-te «vê nos papéis». Tiraste da mala uma capa de cartão, abriste-a. Atirados lá para dentro, sem ordem alguma, estavam os exames médicos, as requisições, as cartas, a papelada toda da tua doença. Não havia espaço na secretária exígua para pousares a capa, assentaste-a nos joelhos, começaste a revirar as páginas, uma folha deslizou para o chão, outra amachucou-se. O cirurgião mais velho disse-te: «Deixe estar, não é preciso, nós temos esses dados, a data no computador está certa.» Atrapalhaste-te ainda mais, caiu outro papel, apanhei-o do chão, acabaste por dizer: «Está aqui.» A data no computador estava errada, a biópsia fora mais de um mês antes. Quando saímos do consultório, disse-te que tínhamos de ir a uma papelaria comprar uma capa de micas, para organizar os documentos, arrumá-los por ordem de datas. Respondeste-me que não, que te entendias bem assim, que não querias «capa de micas nenhuma». Irritei-me, discutimos. De noite, estendido na cama, percebi o que quiseste dizer. Organizares os papéis, categorizá-los cuidadosamente, seria cederes à chantagem, seria jogares o jogo do inimigo. Um homem que esteve nas mãos de Klaus Barbie diz no documentário de Marcel Ophüls que, quando a tortura começou, decidiu não dizer nada, nem sequer o nome. A primeira cedência que fizesse acarretaria todas as outras. Se tentasse criar de raiz uma mentira elaborada, tinha a certeza de que acabaria por se enrodilhar nela, perdendo o fio à meada. Também tu te recusas a dar um passo que seja ao encontro do cancro. Também tu te recusas a inventar uma história que albergue o cancro, onde ele se mova, de que ele seja protagonista. Admira-me até que guardes na capa de cartão os papéis do IPO, que não os deixes perdidos pela casa, no meio dos jornais velhos, que não os deites fora. Amarrotados numa amálgama confusa, parecem tijolos e destroços numa ilusória barricada de rua.


No fim da consulta, assinaste um termo de responsabilidade a dar-lhes o direito de vida e de morte sobre as tuas células, a confiar-lhes o direito de delimitar a parcela de ti que se tornou nociva e que é preciso extirpar. Só então, disseste-me depois, te compenetraste de que ias ser operada, apesar de já to terem dito várias vezes. Não cedes ao cancro um só palmo de terreno sem uma luta feroz. Desconfias de tudo o que te dizem. Se o teu próprio corpo te traiu, então tudo te poderá trair. O mundo deixou de ser um lugar seguro. Um tumor do tamanho de uma grainha de uva, mais pequeno, até, pode matar-te. Vasculhas o passado em busca de presságios que te poderão ter escapado, que te escaparam, certamente. Vasculhas o presente em busca de presságios que iluminem o que vai acontecer doravante, que te orientem nas escolhas que tens de fazer. Procuras sinais tranquilizadores, uma progressão lógica, bóias de sinalização, relações de causa e efeito entre acontecimentos à primeira vista díspares, como faziam os Antigos. Como todos os guerreiros, tornaste-te supersticiosa.


Na consulta de enfermagem, quinze dias depois, a enfermeira olhou para o ecrã e tornou a dizer a data errada da biópsia, dez de Maio. O erro persiste, ganhou vida própria, como o tumor. O tumor são células transviadas, enlouquecidas, comandadas por um programa informático defeituoso. O tumor é um exército nazi, não se pode negociar com ele, só há duas alternativas, resistir ou colaborar. Disseste «não, essa data está errada», tornaste a repor a verdade distraidamente, quase por desfastio, como quem emenda um avô senil ou um interrogador mal-intencionado que nos quer incriminar a todo o custo.


Numa carta do IPO, comprometeram-se a operar-te no prazo de quarenta e cinco dias a partir da data da última consulta. A enfermeira disse que te iam telefonar numa quinta-feira, quase de certeza. Passo as quintas- feiras em sobressalto. Quando o teu telemóvel toca, apresso-me a pegar-lhe e atravesso a casa a correr para to levar. O telefonema não acontece. Passa-se um mês, depois um mês e uma semana. Sento-me à mesa contigo e, com ar solene, digo-te que o tempo está a passar, que tens de procurar outra solução, outro hospital onde as coisas aconteçam mais depressa. Abstenho-me de parecer um arauto da catástrofe, conheço bem o valor das palavras de uma qualquer Cassandra. Como os Antigos, acreditarás nos presságios que te agradarem, e só nesses. Não falei em células cancerígenas, não falei em gânglios, não aludi aos meus sonhos, cada vez menos optimistas. Falei apenas no tempo que corre, nos dias que se sucedem. Respondeste-me que não, cortaste-me a palavra. Não vais recorrer a outro hospital, preferes esperar pelo telefonema do IPO, que há-de chegar numa quinta-feira qualquer. Levantaste- te e saíste da sala.


Quando os Cimbros e os Teutões invadiram a Itália, massacraram várias legiões que lhes saíram ao caminho em campo aberto. Os soldados romanos entraram em pânico perante a horda bravia. O cônsul Mário, enviado in extremis para salvar a situação, entrincheirou-se com as suas tropas. Os bárbaros, altos e cabeludos, autênticos gigantes, desfilaram diante dos baluartes, a soltar urros estridentes que rasgavam os ares e faziam tremer os corações latinos. Desafiaram os Romanos a lutarem como homens, a não se esconderem como cobardes, insultaram-nos, troçaram deles. Eram povos em marcha, com mulheres e filhos, carros de bois, demoraram vários dias a passar. Quando a poeira dos bárbaros assentou, Mário levantou o acampamento entrincheirado, perseguiu-os e massacrou-os até ao último. Os legionários tinham-se habituado aos berros guturais, às cabeleiras, às tatuagens, tinham perdido o medo.


Por enquanto aguardas, atrás do teu baluarte, que a horda vagarosa passe. Não te podes precipitar. Para um exército bisonho, a ofensiva pode ser fatal. Esperarás o tempo que for preciso. Deixarás que eu me aflija, que eu me esfalfe, que eu esbraceje sem razão. Deixarás que eu te dirija súplicas, que eu vista a pele do homem racional. Deixarás que os meus sonhos se ramifiquem inutilmente. Deixarás que eu conceba enredos complexos e epílogos felizes ou sombrios. Quando o telefone tocar, daqui a um mês, dois meses, seis meses, daqui a meio milímetro, se preciso for, estarás preparada.


I dream of hard-fought microscopic battles


Translated by Patricia Anne Odber de Baubeta


I dream of hard-fought microscopic battles, armies of cells disembarking on a yellow beach, in front of high city walls. This, my Iliad, is taking place in your body, in the sentry ganglion in your left armpit, and the besieged emerge the victors, they drive out the intruders. In my dream there is not the cunning of Ulysses, there is no Trojan horse.


The surgeon asked you to undress from the waist up and pulled round a screen on wheels to conceal you from my gaze, you and him. I looked away, uncomfortable that another man should be ordering you about. There was some slight discomfiture in his manner, a vague underlying embarrassment that years of experience had not succeeded in dissipating. Later on I joked about the situation, I told you that your illness is nothing more than a sham, the doctors are conspiring so that they can look at your breasts, such beautiful breasts. I told you that they’re all in collusion and they all pass on the word to one another. And you’re so naïve you always fall for it. I made you laugh and spent that day busy repeating that joke and embroidering on it, knowing that next day it would no longer be funny and it would be necessary to start all over again to distract you.


The actual expression, “sentry ganglion”, evokes wars and cities under siege. The Romans clubbed to death those sentries who fell asleep at their post. It was the comrades of the defaulter who carried out the sentence, like someone punishing an act of treason. When you received the news, you told me you felt as if your body had betrayed you. In the early days of our love, you once told me: “I’m very healthy.” As if you were telling me: “I can be trusted, I won’t let you down. I won’t be a burden on you.” But now your body has betrayed you, the sentry ganglion fell asleep at his post. Your own body threatens to become a burden on you, threatens to control your whole existence. It threatens to enslave you. You told me: “I don’t want to turn into one of those women who drag a burden with them, an appendage taking up space, annoying everyone with its presence: ‘Me and my divorce.’ Or: ‘Me and my dogs.’ In my case it’ll be: ‘Me and my cancer.’ I don’t want that. I just want to keep on being me.” You told me you didn’t really take the diagnosis in when you heard the word “cancer” in the doctors’ mouths. The word “cancer” was a stone in a fruit, a pip you spit into the palm of your hand before putting it on the plate. You only really believed you had cancer when you read the diagnosis in a letter from the Portuguese Oncology Institute: “Invasive carcinoma, with lobular type growth pattern.” You resisted the word “cancer” for as long as you could, you only gave in when you could no longer drive it away, then you withdrew to the second line trench. You’re dynamiting everything while you’re in retreat. You don’t leave the cancer anything to feed on.


The postman had lost his importance long ago, he’d become an obsolete, picturesque figure. For weeks on end, we ignored the letter box. Suddenly, the postman became again the postman from the old days. He rings the doorbell around eleven in the morning, midday. I know it’s him, because he rings various floors, he sounds the doorbells in the building like a church canon. I press the button to unlock the door, I hear him coming into the building, I listen for the dull sound of the letters sliding through the slots. I wait for him to leave then I go down, to check if there’s a letter from the POI. Your cancer has made me more serious, less carefree. I can no longer pretend the postman doesn’t exist. I can no longer pretend that your body is everlasting, that time isn’t passing for you, that you don’t burn in a soft flame like everyone else.


Your hands shook in your first appointment with the POI surgeon. You reminded me of a Sunni Iraqi woman of your age I saw in a documentary about the war against Islamic State. The Shiite militia soldiers entered her house and the camera filmed her standing up in the middle of the living room, surrounded by her children, holding a huge white flag improvised with a sheet, and her hands were shaking, convulsive, like yours, and her voice caught in her throat, just like yours when you asked if they were going to remove your nipple. The surgeon said no. He calmed you down, just as the Shiite soldiers calmed the woman: “Don’t be afraid, madam. Don’t be afraid.” For a moment you seemed defenceless. You pulled yourself together, uncomfortable because you had given way to panic, you asked him when you’d be having the operation. He didn’t know the date, it was too early for that. It was only the first consultation, it was necessary to wait for the letter arranging the appointment for the “decision to operate”. But he said your tumour is small, it is slow-growing. “In a year, it’ll grow a millimetre, if that.” Now, in my dream, the city with high walls has stopped being the sentry ganglion, it’s turned into the tumour, your army of cells is disembarking on the yellow sand. We need Ulysses’ cunning again, we need the Trojan horse. Little by little the city expands, people build houses up against the wall, on the outside. A millimetre per year.


Two auxiliaries dressed in white, a man and a woman, came into the POI waiting room pushing a trolley with free food and drinks, they asked the people if they wanted tea, coffee or orangeade. The man went from seat to seat handing out sweets, two to each person, as if we were children at a birthday party. Cancer, like all illnesses, tries to infantilise us all the better to subdue us. You declined politely, you weren’t ready to join in with the other patients, who unwrapped one of the sweets with a translucent crackling before putting it in their mouths and put the other one away in their pocket or handbag. That tea, those sweets, they’re a rite of passage. There’ll be plenty of time for that, when all the other paths are blocked off.


There are bald women wearing maharajahs’ turbans. There’s a man with a tube round his face, in a bold curve. One would say it was the wire for some earbuds for listening to music, but then I notice it’s actually a transparent tube coming out of his nose, stuck on with tape.


There’s a woman with a gauze visor covering one eye. There are people with strange valves in their throats, as if they were easy-open tins. There are ravaged bodies on show. I enter this strange world with caution, on tiptoe, feeling that I am being tested. I don’t know where to look, I don’t know how to look at these wounds. At night, I don’t know what to dream about these people, I don’t know what stories to make up to rescue them from suffering. I try to learn from these sufferers what is the best way to deal with what is coming, I observe them discretely in search of smiles, I spy on the way the spouses, sitting beside the cancer patients, speak to them, I try not to miss the gestures of mutual affection. You walk among them as if you were a foreign traveller far from home, in a country whose language you don’t speak, someone who is merely passing through, who isn’t going to hang about.

In the consultation to decide about surgery there were three surgeons in the room. The same surgeon as in the first consultation, around sixty years old, and a very young boy and girl. It was the same consulting room as the other time, narrow, with a wash hand basin in the corner. Again the surgeon asked you to undress from the waist up, pulled the rolling screen round. The screen was lined with blue cloth, I could see your head poking out above the top, as in the parapet walk in a barbican. I couldn’t think of any new joke to keep in my memory and use later on to soften what had happened. The girl looked at the computer screen and said: “The biopsy was on the tenth of May, wasn’t it?” We exchanged looks, you said “I don’t know for sure”, I told you “look in the papers.” You pulled out a cardboard binder from your bag, opened it. Thrown inside, in no particular order, were the medical tests, the prescription requests, all the paperwork about your illness. There wasn’t enough space on the little desk to put down the binder, you rested it on your knees, began to turn the pages, one page slid on to the floor, another got crumpled. The oldest surgeon said to you: “Never mind, it isn’t needed, we have that information, the date in the computer is correct.” You fumbled even more, another piece of paper fell, you picked it up from the floor, ended up saying: “Here it is.” The information in the computer was wrong, the biopsy had taken place a month earlier. When we left the consulting room, I told you we had to go to a stationer’s to buy a binder with dividers to organise the documents, arrange them by date. You refused, said you knew perfectly well what you were doing, you certainly didn’t want “a binder with dividers”. I got cross, we argued. At night, lying in bed, I understood what you meant. Organising the papers, classifying them with care, would be to give in to the blackmail, it would be playing the enemy’s game. A man who fell into the hands of Klaus Barbie says in Marcel Ophüls documentary that when the torture began, he decided to say nothing, not even his name. The first act of surrender one makes brings all the others in its wake. If he tried to invent an elaborate lie, from scratch, he knew he would surely get tangled up in it, losing his thread. You too refuse to take a step that takes you closer to the cancer. You too refuse to invent a story that accommodates the cancer, a story where it moves around, a story in which the cancer plays the leading role. I am even surprised that you keep the POI papers in the binder, that you don’t leave them lying about the house, in among the old newspapers, that you don’t throw them away. Bundled together in a confused jumble, they look like bricks and debris in an illusory street barricade.


At the end of the consultation, you signed a consent form giving them the right of life and death over your cells, trusting them to delimit the part of you that has become harmful and needs to be extirpated. Only then, you told me afterwards, did you take on board that they were going to operate, although they’d already told you several times. You aren’t yielding an inch to the cancer without putting up a ferocious fight. You distrust everything they tell you. If your own body has betrayed you then everything can betray you. The world has stopped being a safe place. A tumour the size of a grapeseed, even smaller, may kill you. You comb through the past in search of omens you may have missed, that you missed, certainly. You comb through the present seeking omens that will reveal what will happen from now on, to guide you in the choices you have to make. You look for reassuring signs, a logical progression, signalling buoys, relations of cause and effect that at first sight don’t match up, just like the Ancients did. Like all warriors, you became superstitious.


In the consultation with the nurse, a fortnight later, the nurse looked at the screen and gave the wrong date for the biopsy, the tenth of May. The error persists, it has taken on a life of its own, like the tumour. The tumour is made up of wayward cells that have gone crazy, commanded by a faulty IT program. The tumour is a Nazi army, you can’t negotiate with it, there are only two alternatives, you resist or you collaborate. You said “No, that date is wrong”, you re-established the truth absentmindedly, almost out of boredom, like someone correcting a senile grandparent or a badly intentioned interrogator who wants to incriminate us at all costs.


In a letter from the POI, they undertook to operate on you within forty five days from the date of the last consultation. The nurse said they would almost certainly telephone you on a Thursday. I spend every Thursday living on my nerves. When your phone rings, I rush to pick it up and run through the house to bring it to you. The telephone call doesn’t come. A month goes by, then a month and a week. I sit down at the table with you and, with a solemn demeanour, tell you that time is passing, you have to look for another solution, another hospital where things happen more quickly. I refrain from seeming like a harbinger of doom, I am well aware of the value of words of some Cassandra or other. Like the Ancients, you’ll believe in the omens that suit you, and only those. I didn’t talk about cancerous cells, I didn’t talk about ganglions, I didn’t mention my dreams, which are less and less optimistic. I just talked about time passing, the days going past. You answered me no, you cut off my words. You’re not going to go to another hospital, you prefer to wait for the POI’s telephone call, which will come on some Thursday or other. You got up and left the room.


When the Cimbri and the Teutons invaded Italy, they massacred several legions that came out to meet them in open countryside. The Roman soldiers panicked in the face of the wild horde. The consul Gaius Marius, sent in extremis to retrieve the situation, dug into trenches with his troops. The barbarians, tall and long-haired, authentic giants, paraded in front of the ramparts unleashing piercing shrieks that ripped the air and made the Latin hearts tremble. They challenged the Romans to fight like men, not to hide like cowards, they insulted them, they ridiculed them. They were people on the march, with wives and children, oxcarts, it took them several days to go past. When the barbarians’ dust settled, Marius raised the entrenched encampment, followed them and massacred them to the last man. The legionnaires had got used to the guttural shouts, the manes of hair, the tattoos, they had lost their fear.


For the moment you are waiting, behind your rampart, for the slow-moving horde to pass by. You can’t rush into anything. For an untrained army the offensive can be fatal. You’ll wait as long as it takes. You’ll let me get upset, wear myself out, rant and rave for no good reason. You’ll let me plead with you, playing the rational man. You’ll let my dreams branch out to no avail. You’ll let me think up complex plots and happy or dark epilogues. When the telephone rings, in a month, two months, six months, half a millimetre from here if necessary, you’ll be prepared.


Paulo Faria


Paulo Faria nasceu em 1967, em Lisboa. Traduziu Orwell, Joyce, Kerouac, DeLillo, Truman Capote, Cormac McCarthy e muitos outros. Venceu o Grande Prémio de Tradução APT/SPA 2015, pela tradução de História em duas cidades, de Charles Dickens (Relógio D’Água). Publicou dois romances, Gente acenando para alguém que foge (Minotauro, 2020) e Estranha guerra de uso comum(Ítaca, 2016). Publica crónicas e ficção no jornal Público.


Paulo Faria was born in 1967, in Lisbon. He translated the works of  Orwell, Joyce, Kerouac, DeLillo, Truman Capote, Cormac McCarthy, and many others, including Dickens' A Tale of Two Cities (2015), which won a prize from the Portuguese Translators Association and the Portuguese Society of Authors. He published two novels, People Waving to Someone Running Away (Minotauro, 2020), and Strange War of Common Use (Ítaca, 2016). He writes features for the Lisbon newspaper Público.

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Writer's pictureVirna Teixeira



funeral


Antes

acreditava sabê-la,

senti-la, sorvê-la.

Dizia

tocá-la

no espelho,

mas mentia:

Podia me surpreender

quase sem querer, mas seria

assim,

de golpe.


O peso das

pedras agora

é perfume

forte de amante

que espreita

a cada curva, em cada

sombra em

cada dia meu

sangue prenhe

do último momento

a cada segundo

flertando

com meias-vozes e

falsos sorrisos.



Canção

Lembro duma noite

em que você me disse:

‘eu te amo.’ Contém

amianto. Não respire a poeira. Consulte

as instruções do catálogo.

Mas não há nada

parecido com um catálogo

do mundo.

Também me lembro de como

você me perguntou porque, diabos,

eu perdia tempo odiando a cor amarela.

No fim das contas eu nunca

sei nada sobre ninguém. Não existe

tempo, apenas espaço.

Uma teia de aranha

tatuada na mão significa

a lembrança de um comparsa,

de um cúmplice morto. Talvez

eu também te ame.



Sem ao menos apagar a luz

sinto os azulejos frios

sob minhas costas

quadrados brancos

e coloridos

de tamanhos

diferentes

ao meu redor

caos: um

computador e roupas

limpas e sujas

livros (um zohar,

uma coletânea de poesia polonesa e livros

sobre obstetrícia) e ainda

uma garrafa de vodca barata e uma

caixa de remédios- na verdade são três:

benzodiazepínicos, antidepressivos e

um chá

que veio da índia

(feito de folhas de limão,

com aroma agradável e um leve

um leve sabor cítrico)

adormeço sem ao

menos apagar a luz

sinto os azulejos

frios

Com a boca seca

leio poemas chineses traduzidos

para o esloveno e novamente

traduzidos para o espanhol: nunca

o meu idioma, nunca em

mim: é tanta tristeza

que eu podia escrever

dez, mil, um milhão

ou até todos os poemas

sobre nada.


Os artistas da fome

Talvez seja tarde:

dois corpos

quase em inanição.

Tantas fomes

diferentes,

dois animais –

que se recusam a comer –

se acasalam

num campo de concentração:

minhas costelas e as tuas;

meus mortos e os teus.


Luci Rivka



Luci Rivka nasceu em 1986 em Curitiba e hoje vive em Fortaleza. Judia e transgenero, é poeta tradutora e idichista, além de ser a mente por trás da editora Dybbuk. Colaborou na edição passada da Theodora com traduções dos poemas de Priscila Merizzio.

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