CLAUDINHA FESTA: DO MERCADO EDITORIAL PARA A CENA ELETRÔNICA
'Fazer um set é contar uma história.'
Claudinha, antes de chegar na noite, conta um pouco da tua trajetória. Poucas mulheres iam embora de Fortaleza há vinte anos atrás. Falo com conhecimento de causa. Como foi isto?
Fortaleza é a cidade da minha infância, é carregada de memória afetiva. Mas com o passar do tempo eu sentia que a cidade já não satisfazia meu desejo de liberdade. Já trabalhava no mercado editorial em Fortaleza com editoras de livros didáticos, fazia a divulgação de livros de literatura em compras feitas pelo governo para bibliotecas. Mudei pra São Paulo em 1995. Cursei Propaganda e Marketing no Mackenzie, me decepcionei horrores com o curso. Conheci o pai do meu filho, que também é da área editorial e juntos abrimos uma editora, a Hedra. Engravidei, abandonei o curso no Mackenzie e passei a fazer uns cursos livres na FFLCH, na USP. Estudei os autores e pensadores que mais gostava e com os quais me identificava. Tive aulas com os melhores professores da USP, que publicávamos em nosso catálogo e com os quais tinha uma convivência intelectual muito rica gratificante. Entrei na USP não por vestibular, mas pela Hedra. Não tenho diploma, mas guardo comigo toda uma vivência que modificou minha vida e meu modo de pensar o mundo. Tenho ate hoje todas as anotações de aulas em cadernos.
E o teu trabalho com o mercado editorial em São Paulo?
A Hedra abriu portas para que eu mergulhasse fundo no mundo livros. O contato com escritores, poetas, críticos, o meio acadêmico, editores, livreiros, tudo me era fascinante, desde a conversa com autores até a chegada do livro da gráfica e a distribuição nas livrarias. Organizava os lançamentos de livros, as feiras, encontros de poesia, literatura, fazia assessoria de imprensa, cuidava de toda comunicação da editora. Tínhamos também uma livraria e um café no mesmo prédio da editora que se tornou ponto de encontro de escritores, poetas, leitores. Havia uma excelente conexão com outras editoras e a troca intelectual era intensa.
Percebo que você gosta muito de poesia. Você escreve? Lê poesia com frequência? Pode citar alguns poetas que você costuma ler?
Leio bastante e deixo a poesia influenciar meu trabalho. Muitas vezes recorro a poesia para falar de festas, para traduzir um sentimento coletivo que existe no meio em que trabalho. Um poema tem o poder de decifrar o indecifrável dentro de mim. Encontro significados na poesia, ela me faz compreender o incompreensível. Leio Drummond e Fernando Pessoa sempre e repetidas vezes, a poesia política de Brecht me influencia bastante. Rimbaud, porque é trágico e belo, Baudelaire, Florbela Espanca, Silvia Plath, E. E.Cummings, Adília Lopes, Hilda Hilst… lista imensa. Tenho amigos poetas, editores e escritores que acompanho o trabalho e que me orientam no universo da poesia e da literatura quero mencionar aqui o Carlito Azevedo, importantíssimo para minha formação. Escrever? Seria um sonho que guardo pra velhice
E depois, como foi o impulso de ir para Berlim? O que te fez voltar para o Brasil?
Após ter que deixar a editora vivi um período da minha vida entre São Paulo e Berlim estudando, trabalhando… Foi uma época muito dolorosa em minha vida, enfrentava um divórcio e tinha um filho pequeno, me vi completamente sozinha. Sofri muito preconceito e machismo de todos os lados, inclusive de mulheres. Aqui não me restava mais nada ou voltava para minha família fracassada, com a vida devastada ou teria que me reinventar. Decidi sair do Brasil e apliquei um visto para estudar alemão. Vendi metade do que tinha móveis, carro, livros (uma biblioteca com quase 500 livros, me dói até hoje). Berlim também foi um exílio para mim, uma cidade que me ensinou muito sobre ser livre e acreditar nas minhas escolhas. Foi lá que aprendi tudo que sei sobre noite, festas e mundo underground. Conheci pessoas da cena eletrônica, dos clubes, fui aos grandes festivais da Europa, fiz grandes amizades, isso mudou completamente a minha vida. Voltei pra São Paulo com um grande aprendizado de vida na bagagem, foi transformador, eu diria. O que me fez voltar para o Brasil? Meu filho a possibilidade de estar ao lado dele.
Como se deu a tua inserção na cena eletrônica underground de São Paulo? Pode falar um pouco do teu trabalho atual?
Eu trabalho principalmente como promoter e também produzo algumas festas/after. Meu foco é o crescimento da cena, procuro estabelecer uma conexão entre os núcleos de festas. Minha paixão pela música e pela dança me conectou com a cena. Já frequentava e tinha muitos amigos djs que tocavam e organizavam festas e festivais. Estava de volta ao Brasil. Nesse momento despertava em São Paulo um movimento totalmente novo, colaborativo, político, fora dos clubes com propostas de uso e ocupação dos espaços vazios e abandonados da cidade feito por uma galera jovem, criativa e ousada, disposta a criar vivências artísticas, experimentações sonoras e o exercício de uma liberdade individual e coletiva muito semelhante ao que eu havia vivenciado em Berlin. Hoje pra mim as festas se tornaram um movimento de resistência contra toda essa caretice e conservadorismo que nos fazem reféns de uma cidade murada por grades e preconceitos. Procuro exercer uma militância, a música é o fio condutor. Estou muito feliz com minha escolha, me sinto acolhida pela cena recebo muito carinho e o respeito do público de pista e dos artistas e de todos que fazem parte dessa cena de festas independentes.
Os DJs homens são a grande maioria nos festivais de música eletrônica. Você acha que as mulheres DJs estão crescendo na cena eletrônica? Que dificuldades elas enfrentam?
Sim, é um universo predominantemente masculino e os homens tem dificuldade de aceitar a presença da DJ mulher. O número de mulheres ainda é muito pequeno em festivais. Observo de perto a militância das amigas para serem reconhecidas como profissionais. Pequenas mudanças tem acontecido porque algumas mulheres tomaram a frente e estão elas próprias criando um espaço de penetração na cena eletrônica. Ainda há muito a ser feito.
Você é uma mãe incomum. Mãe e filho trabalhando juntos na noite?
Eu tento lidar de forma natural e espontânea com isso, mas confesso que existem situações delicadas tanto pra mim quanto pra ele. E muitas vezes acaba afetando a relação mãe e filho. Mas respeitamos o espaço que cada um conquistou e transita. Acho que para o Benjamim é mais difícil lidar com isso, especialmente na adolescência. Ele tem autonomia e independência no trabalho dele.
Aquela pergunta inevitável. Já sofreu assédio no teu trabalho?
Sim, obvio. Mas assédio e machismo estão presentes na vida de uma mulher desde a mais tenra idade. Aprendi cedo a lidar e enfrentar sem medo. É preciso pulso firme e coragem para tanto comportamento abusivo. Especialmente na noite quando alguns acham que podem se aproveitar de certas vulnerabilidades. Se a situação passar dos limites chamo reforço da segurança. Nas festas nenhum tipo de abuso é tolerado, estamos muito atentos.
Pode dar umas dicas de coisas novas que você tem ouvido?
Tenho escutado muita produção experimental de techno em formato de live. é uma outra experiência sonora, me permite viajar.em outras frequências. Gosto de djs que transitam pelas diversas vertentes da música eletrônica, Techno, House , Acid, Minimal em faixas bem mixadas. Fazer um set é contar uma história e fazer a pista viajar em transe com a música. O universo da música eletrônica é tão vasto. Eu escuto muito música clássica também.
Claudinha, before we talk about your work, tell me a bit about your path through life. Twenty years ago, it was uncommon to see women leaving Fortaleza. How did this come about?
Fortaleza is my hometown, a place charged with affective memories. But over the years I felt that the city was not enough for my desire of freedom. I was already working in publishing in Fortaleza with educational books and literary books bought by the government for public libraries. I moved to São Paulo in 1995. I studied Advertising and Marketing at Mackenzie University, and it seemed to me to be a business based on deception. I met my ex-partner, who also works in publishing, and together we started a publishing house, Hedra. I got pregnant, I gave up the graduation course at Mackenzie, and I started doing some open courses at the Faculty of Philosophy and Literature at the University of São Paulo. I had the opportunity to read the authors that interested me. I had classes with teachers who were also writers published by Hedra and with whom we had an intense intellectual exchange. I got into the university not by admission exams, but through Hedra. I don’t hold a degree, but gained experience that changed my life and my perceptions about the world. I keep my notebooks from that period.
And what about your work in publishing in São Paulo?
Hedra opened doors for me, and allowed me to dive into the world of publishing. The contact with writers, poets, critics, university, publishers, book sellers, all of that was fascinating for me, from the book’s arrival at the printers to distribution through bookshops. I organised the book launches, the book fairs, the poetry readings, the literary events, I was the press agent, I was responsible for all communication. We had had a book shop and a café in the same building, and it became the meeting point for writers, poets and readers. There was also an excellent connection and cultural exchange with other publishers.
I notice that you like poetry a lot. Do you write? Do you read poetry often? Could you mention some poets that you read usually?
Yes, I read a lot and poetry is inspiring for my work. Often I use poetry to somehow advertise parties, to translate a collective feeling that exists in my work media. A poem has the power to decipher the illegible inside me. I always read Carlos Drummond de Andrade and Fernando Pessoa’s poems, and Brecht’s political poetry influences me a lot. I read Rimbaud, because he is tragic and beautiful, Baudelaire, Florbela Espanca, Silvia Plath, e. e. Cummings, Adília Lopes, Hilda Hilst… a long list. I have close friends who are poets, publishers and writers, I follow their work, and they help me to understand the universe of prose and literature. Brazilian poet Carlito Azevedo, for instance, is a particular reference for me. To write? It is a dream for my old age.
How was the impulse to go to Berlin? And what made you come back to Brazil?
After leaving Hedra I spent some time between São Paulo and Berlin studying, working… It was an intense and painful period for me, facing a divorce with a small child, and I felt very lonely. I suffered a lot of prejudice and sexism, including from women. I had nothing left here, either I would come back to my failed family with a devastated life, or I would have to reinvent myself. I decided to leave Brazil, and I got a student visa to study German. I sold half of my stuff, furniture, my car, (a collection with almost 500 books, that still hurts). Berlin was also an exile for me, a city that taught me a lot about freedom and choices. It was there that I learned everything that I know about nightlife, parties and the underground world. I met people from the electronic scene, from the nightclubs, I went to the big festivals in Europe, I made great friendships, all that changed my life completely. I came back to São Paulo with a great apprenticeship, it was a life changing experience for me. What made me come back to Brazil? My son and the possibility to be with him.
How did you get into the underground electronic scene in São Paulo? Could you talk a bit about your current work?
I work mainly as a promoter and also as a producer in some after parties. My focus is the expansion of the scene, I try to stablish a connection between the parties’ cores. My passion for music and dancing connected me with the scene, I was a regular attendee. I had many DJ friends who were playing and organising music and festivals. I was back in Brazil. At that moment in São Paulo a totally new movement was appearing: collaborative, political, outside the clubs, proposing the occupation of some empty and abandoned city spaces. The movement was organised by young, creative and audacious people, open to artistic and sound experiments and the pursuit of individual freedom very similar to what I had experienced in Berlin. Parties for me have become a movement of resistance against this conservatism that turn us into hostages of a city walled by fences and prejudices. I think of myself as an activist, and music is the vehicle. I am very happy with my choices, I feel part of the scene. I am welcomed and respected by the audience, artists and everyone that takes part in this scene of independent parties.
Male DJ are still the overwhelming majority at electronic music festivals. Do you think that female DJs are growing in the electronic scene? What kind of difficulties do they face?
Yes, it is a predominantly masculine world, and men find it difficult to accept the presence of the female dj. The number of women is still small in festivals. I can see close up the activism of some friends fighting to be recognised as professionals. Small changes have been happening because some women took the initiative, and they are creating their own space to break into the electronic scene. There is a still a lot to be done.
You are an unusual mother, and your son is a dj. Mother and son working together in the nightlife business?
I try to deal in a natural and spontaneous way with that, but I confess that there are some delicate situations for both of us. And sometimes it ends up affecting our relationship. But we respect each other’s space. I believe that for Benjamim it has been a bit harder to deal with that, particularly during his adolescence. He has autonomy and independence in his work.
That inevitable question. Have you even suffered harassment in your work?
Yes, of course. But harassment and sexism are present in the life of a woman from a very young age. I have learned soon to deal with it and to face it without fear. You must be brave and combative against so many abusive behaviours. Particularly during the night when some people believe that they can take advantage of certain vulnerabilities. If the situation is beyond limits I ask for more security staff. Zero tolerance to abuse in the parties, we are all very alert to that.
Could you recommend some nice stuff you have been listening to recently?
I have listened to a lot of experimental techno production in live format. It’s another sound experience, it allows me to trip in other frequencies. I like djs who can transit through several watersheds of electronic music, Techno, Acid House, Minimal in well-mixed tracks. To make a set is to tell a story and to make the dance floor trips in a trance with music. The universe of electronic music is huge. I listen to a lot of classical music too.
Claudia Pinheiro nasceu em Fortaleza, morou em Berlim e vive atualmente em São Paulo, onde atua como relações públicas da festa Mamba Negra, e faz divulgação de varias festas do cena eletrônica underground, como Capslock, Subdvisions, Serialism, Caldo, Existe Pista Após o After e Obra.
Claudia Pinehiro was born in Fortaleza, lived in Berlin and is now based in São Paulo, where she works as public relations for the party Mamba Negra, and for a series of underground electronic parties, like Capslock, Subdvisions, Serialism, Caldo, Existe Pista Após o After and Obra.