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não sei dizer o que sei que quero dizer.

 

o céu caiu por terra, o céu caiu com uma floresta nas costas. não fui

eu que disse, mas ficaram assim as árvores plantadas.

se o rio são corre por debaixo do rio não são, se se guarda a

esperança em lugar seguro, se o que a vida quer é brotar, se calhar o

movimento do fim do nosso mundo é um levantar.

o céu caiu. o céu vai levantar. o céu vai levantar e leva as árvores

inteiras, raízes nas costas do céu, entrançadas.

o céu vai levantar e vai sacudir a poeira, vai sacudir o que

não tem raízes. o que não tem raízes, poeira, assenta e, sem árvores, não respirar.

quando morrer, não respirar.

se, quando morrer, poeira, me entrançarem sementes de maçaranduba nos cabelos, ela vai crescer e, quando o céu levantar, levanta árvore e eu com ela.

"outra característica da maçaranduba é que o látex extraído da árvore

é comestível e pode ser consumido como um substituto do leite de

vaca".

árvore de leite.

coisas que revelam a matéria da vida.

beber árvore.

esquece-se das coisas perecíveis. se está viva, fenece.

foi criada por árvore.

para beber teve de beijar.

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(da Peça Triste in English from Spanish)

Doar

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Tu és uma coisa que ocupa espaço, tu não és eu, és uma coisa diferente de eu, existes no mesmo tempo que eu, estás aqui comigo. Eu sou outra coisa mas somos ambas pessoas. Ocupas espaço, és matéria, és feita da matéria das coisas, fazes parte da matéria do mundo e percebes o mundo com dois olhos - perdão, vamos pelo inicio da percepção - com a pele, percebes o mundo porque tens pele, que é o que te veste o corpo e a pele cobre o que do teu corpo não vês mas existe: ossos, músculos, cartilagens.  A  pele tem pelos, coisas finas que captam a luz, que sentem o mundo em arrepios e esquentamentos. Os ossos que não vês constituem a raiz do corpo. Se olhares para baixo, deixando o peso da cabeça - que é o que fica no cimo do corpo e pesa - se deixares descair a cabeça, vês o chão e os pés, depois pernas,  joelhos, coxas, ventre, barriga, peito e dois braços que acabam em mãos com dedos. Do teu corpo não verás mais nada, sem ajuda, só lateralidades e as partes de trás das pernas e braços, de fugida. Não verás as tuas costas que existem contigo nem a tua cara, a tua nuca. A tua cara que tem - se a ela lhe levares as mãos verás com as mãos- a tua cara que tem, de cada lado, duas orelhas de onde percebes o mundo ouvindo o mundo, na minha voz; tem, entre as orelhas, um nariz, por onde cheiras o mundo, na minha pele; tem debaixo dele uma boca, onde comes o mundo,  e a mim com ele; e no cimo de tudo isso tem os teus olhos que me vêm. E isto que está a acontecer és tu em acto, de ver, de ouvir, de cheirar, de sentir.  E, quando acordares, depois de te deixares dormir hoje, assim serás, assim todos os dias serás, em acto. E não precisarás de me ter na mão, na boca, por perto, ao alcance do ouvido e do olho. Assim serás, até deixares de ser porque o curso da vida é até ao esquecer. O tempo resolve-se na erosão.

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Sónia Baptista

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Aquarelas: Julia Panadés

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Aquarelas de Julia Panadés 'semente e grama' e 'folhas para um alfabeto' (2018), criadas em diálogo com o texto de Sónia Baptista.  (Julia Panadés developed two aquarels specially for Sónia Baptista's texts published here).

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Sónia Baptista é mestra em Coreografia e Performance pela Universidade de Roehampton em Londres. No conjunto da sua obra, explora e experimenta com as linguagens da Performance, Dança, Música, Literatura, Teatro e Vídeo. Com tudo faz poemas dramatúrgicos, espectáculos e performances. Tem seis livros publicados. 

 

Sónia Baptista has a masters degree in Choreography and Performance from Roehampton University in London. In her work as whole, she explores the languages of performance, dance, music, literature, theater and video. She writes theatrical poems, spectacles, and performances. She has six books published six books.  

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