Quarto 106
Ele arrulhou um som sem sentido, ajustou as asas que por sua vez emitiram um ruído leve, de página de papel que se esfrega em outra página, mas para o qual ainda não foi dado nome ou originado verbo. Nas garras desse pombo havia deformidades, ó céus, grandes grânulos que o impediam de andar de maneira ajustada, ele já em sua existência de coisa criada mas desgarrada da vida, isolado da ordem do universo, um pombo que ocupa calçadas e praças de cidades, deixando-as mais cinzas, arrulhando nossos passos, que, tal como pombo e legítimo, ele tem o grande prazer de interromper.
Passei pela portaria do hotel no qual dormiria naquela noite, um sofá de homens em pencas com notebooks no colo, outros de chinelo e shorts portando latas de Skol, todos com olhares de perseguir passos e de acompanhar mulheres desacompanhadas.
Ao final de um corredor ficava o elevador sinistro do hotel. Para uma moça só e desinteressada, elevadores de hotéis cheios de homens sentados em sofás são sempre sinistros, sobretudo se eles são velhos – os elevadores, os sofás e os homens.
Eu portava batatas aromatizadas, azeite e ervas, não me lembro muito bem, além de sucos, bolos, doces, um cartão de débito / crédito no fundo do bolso, um medo no fundo das calças, vinda da rua da loja de conveniências, única na vizinhança lúgubre-tropical de Paraty. Enquanto eu ainda estava na calçada, um carro de homens gritou vem cá gostosa!, andei mais depressa enquanto repassava mentalmente peça por peça que vestia naquela noite, sem achar um sentido para o gostosa que lançaram na minha direção, subi os degraus para a decepção.
Com dificuldade, encontrei a porta do meu quarto, não havia placa, já tinha ficado puta porque me obrigaram a pagar a diária logo na entrada, corri riscos no caixa rápido por causa de cinquenta reais que faltaram na carteira, mas aí apertei a vista e vi a marcação a lápis, número 106, girei a chave, abriu.
Na cama, sacolas plásticas e chapéu com furinhos e abas largas, revistinha e mapa, disputei um espaço, comer era uma necessidade, rasguei os pacotes, os itens salgados fizeram as honras, e estavam maravilhosos de se comer e de se mastigar, mas entre um som e outro ouvi algo que de início parecia ser um gemido.
A TV seria providencial naquele momento, já que a possibilidade de ingerir o que quer que seja e ouvir o arrulhar de um pombo é inexistente. Um apresentador de domingo e peitola estufada apareceu na tela, foi um correr de dedos para mudar a imagem, estancar a desgraça, aplacar o karma. Novos vibratos. Atendi ao celular na frequência do desengano. Era muito hormônio feminino para muita conversa via dispositivo tecnológico, a natureza implacável e furiosa, ai de quem pretende enfrentá-la, desafiá-la com suas invencionices de homenzinho moderno empertigado apertado nos fundos e de alma comerciária.
As comportas do desassossego foram abertas, Paraty invadida por ondas gigantes, não havia mais museu histórico ou igrejinha, barca de travessia, areia fofa, cartazes da copa que ainda estava por vir, céu azul, nuvem branca e sol com carinha smile, beleza pura, S transformado em X. Desligamos, desligadas.
Só me restou um banho no alívio do instante, a inundação vinda de cima que eu tanto queria. Do lado de fora do vitrô do banheiro, um ajuste de asas emitiu o ruído leve, de página de papel que se esfrega em outra página. No vidro, o pombo deixou suas marcas da desordem, uma aquarela fisiológica nas cores verde, branco, preto, cinza, com um toque de azul.
Room 106
It cooed a senseless coo and adjusted its wings, which made that little noise of pages rubbing against each other―a sound that had no name or verb attributed to it yet. The claws of the pigeon showed deformities. Good heavens, those large beads did not allow it to walk correctly during its little existence as a fully grown being ripped from life, isolated from the order of the universe. A pigeon that strolls the sidewalks and squares of the city, leaving the landscape grayer and cooing at each step we take, like a legitimate pigeon that takes pleasure in interrupting others.
I walked down the lobby of the hotel where I had spent the night. There was a couch full of men working on their notebooks, while other men were standing around wearing slippers and shorts and holding a can of beer―all of them looked like they followed other people's steps and made company to unaccompanied women.
The hotel's sinister elevator was at the end of the lobby. For a girl who's by herself and not interested, the elevator of a hotel full of men sitting on couches is always something sinister, especially if they are older―I mean, the elevator, the couch, and the men.
I carried some flavored chips―olive oil and herbs, I can't remember―as well as juice, cake, candy, a credit/debit card deep in my pocket, some fear deep in my pants, and was coming back from a convenience store, the only one around that bleak tropical city of Paraty. When I was walking down the street, a car passed by and the men inside yelled, “Come here, hottie!” I walked faster and reflected on each clothing item I was wearing that night, but failed to understand why they had shouted “hottie” at me as I walked up the steps towards disappointment.
I had a hard time finding my room, since there were no signs on the door. I was beside myself already because they had made me pay for the room in advance. I had to risk being robbed at an ATM because I was $50 short. Then I squinted and saw “106” written in pencil on the door. I put the key in the lock, turned it around, and the door opened.
In bed, I had scattered some plastic bags, a beach hat with a large flap, a magazine and a map. I tried to make some room, since I needed to eat. I tore the packages, the salty items first, which were wonderful to eat and chew on. But, between one sound and another, I heard something that at first sounded like moaning.
Turning on the TV was crucial at that moment, since there was no chance I'd sit there and digest whatever that was while listening to a pigeon cooing. A Sunday talking head with a pigeon chest appeared, so I changed the image on the screen with swift fingers to halt the misfortune, appease karma. New vibrations. I answered the cell phone at the frequency of disappointment. It was too much female hormone to have that kind of conversation over a technological device. Nature is relentless and furious, so who would dare to face it and challenge it with little inventions of a modern, prim man lacking funds and with the soul of a salesman.
The levees of uneasiness had been raised, Paraty was invaded by giant waves, there was no History Museum anymore, no little church, ferry boat, soft sand, posters for the impending World Cup, blue skies, white clouds and a smiley sun, pure beauty, or the sound of “sh” on the local accent. We absentmindedly hung up.
The only thing left for me was the relief of the moment, the flood that came from above. On the other side of the bathroom window, wings were adjusted and made that little noise of pages rubbing against each other. On the window, the pigeon left its mark of disorder: a physiological watercolor with shades of green, white, black, gray, and a touch of blue.
Cristina Judar
translated by Rafa Lombardino
Ilustração: João Concha
Cristina Judar é autora das HQs Lina e Vermelho, Vivo, do livro de contos Roteiros para uma Vida Curta e do romance Oito do Sete. Também é autora do livro-arte Luminescências (em parceria com Paula Mastroberti) e do Questions For a Live Writing, projeto de prosa poética desenvolvido na Queen Mary University of London. É uma das editoras da revista de arte e cultura LGBT Reversa Magazine.
Cristina Judar is the author of comic books Lina and Vermelho, Vivo, the short stories' book Roteiros para uma Vida Curta, and the novel Oito do Sete. She published Luminescências (in partnership with Paula Mastroberti) and Questions For a Live Writing, a project of poetic prose developed at Queen Mary University of London. She's is one of the editors of the cultural LGBT magazine Reversa Magazine.