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«um dia eu esperava entender por que foi que tudo aconteceu»

«speravo di capire, un giorno, perché le cose erano andate in quel modo»

 

 

Hotel Atlântico, de J.G. Noll

 

Em certos instantes, sobretudo quando Sebastião estava longe, eu calculava que tinha chegado o momento exato de eu enlouquecer. Eu refletia: supondo que um psiquiatra percebesse o meu fingimento de loucura, ele me mandaria assim mesmo para o mundo dos loucos, porque fingir-se de louco para ele seria com certeza um sintoma a mais de loucura.

Quando Sebastião reaparecia, a minha vontade de fugir a qualquer preço dali descansava um pouco. Eu costumava dar atenção plena ao que ele falava – coisa rara em mim, que sempre tivera dificuldade em seguir os outros.

O que Sebastião falava era exatamente aquilo que eu precisava ouvir para continuar me apegando à rala vida que eu ainda tinha em volta.

Sebastião me relatava às vezes algumas cenas místicas tão limpas que eu não precisava imaginar nada além de ouvi-lo.

Um dia ele entrou no quarto dizendo que tinha visto uma aparição. Ele contava com a maior tranquilidade, vira no meio de uma moita a coisa se mexendo, ovalada, clara e luminosa irradiando muita proteção.

Sebastião acabou de contar enquanto me aplicava uma injeção. Disse que eu ia sentir uma sonolência, que eu me entregasse.

Que eu me entregasse foi a última coisa que ouvi. E tive um sono esmagador. Desses que destroem qualquer resquício de sonho.

[…]

 

A injeção era forte, eu a conhecia bem. Não me demorei para voltar à posição deitada, eu tinha receio de que o sono me pegasse de qualquer jeito. Me encolhi como eu gostava de dormir, disse a Sebastião que um dia eu esperava entender por que foi que tudo aconteceu.

 

 

Tradução italiana de Jessica Falconi (Arcoiris: Salerno, 2017)

Certe volte, soprattutto quando Sebastião si allontanava, credevo fosse il momento giusto per impazzire. Riflettevo: supponendo che uno psichiatra intuisse la mia finta pazzia, mi avrebbe comunque spedito nel mondo dei pazzi, perché fingermi pazzo con lui sarebbe stato senz’altro un ulteriore sintomo di pazzia.

Quando Sebastião ricompariva, la volontà di scappare da lì a tutti i costi si placava un po’. Prestavo sempre la massima attenzione alle sue parole, cosa rara per me, che avevo sempre avuto difficoltà a seguire gli altri.

Sebastião diceva esattamente quello che avevo bisogno di sentire per continuare ad aggrapparmi alla vita grama in cui ero immerso.

A volte mi riportava certe scene mistiche così nitide che non dovevo immaginare niente oltre alle sue parole.

Un giorno entrò nella stanza dicendo di aver avuto una visione. Raccontava con la massima serenità di aver visto muoversi in un cespuglio una cosa di forma ovale, chiara e luminosa, che infondeva un senso di grande protezione. Finì di raccontarmela mentre mi iniettava un sedativo. Disse che avrei avuto sonnolenza, di lasciarmi andare. Di lasciarmi andare, fu l’ultima cosa che sentii. Caddi in un sonno pesantissimo. Di quelli che distruggono ogni barlume di sogno.

[…]

L’iniezione era forte, la conoscevo bene. Mi rimisi subito sdraiato, temevo di addormentarmi in qualsiasi altra posizione. Mi rannicchiai come più mi piaceva e dissi a Sebastião che speravo di capire, un giorno, perché le cose erano andate in quel modo.

 

 

Ao Noll, in memoriam.

 

Ia encontrar o João Gilberto Noll em março do ano passado. Eu estava no Brasil com uma bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para traduzir para italiano Hotel Atlântico. Ele estava entusiasmado com o projeto da tradução, e marcou o encontro por mail na cafetaria do Museo de Arte do Rio Grande do Sul, na lindíssima Praça da Alfândega. Poucos dias antes da data marcada, uma morte inesperada, solitária e discreta, tal como dizem fosse o Noll, impediu o nosso encontro.

Quase sem querer acreditar, fui na mesma a Porto Alegre. Procurei nos sebos os últimos romances dele, em particular Solidão Contintental. Este título, e os narradores dos romances do Noll, sempre me lembram os versos de Drummond de Andrade: Nesta cidade do Rio/de dois milhões de habitantes, /estou sozinho no meu quarto,/estou sozinho na América./Estarei mesmo sozinho?

 

Um jornalista do Zero Hora me perguntou do que teria conversado se me tivesse encontrado com o Noll.

Pois é, o que eu teria conversado com ele se o tivesse encontrado?

Alguém disse que os grandes escritores vão escrevendo sempre o mesmo livro: variações sobre o tema de poucas e sólidas obsessões. Acho que o Noll faz parte desta categoria. Desde o primeiro conto do seu livro de estreia até ao último romance, lemos e relemos múltiplas declinações de sua ‘solidão continental’.

Gostava de falar com ele dos lugares de suas narrativas. Lugares, não-lugares, heterotopias: penitenciârias, hospitais, asilos. Mas também os espaços da vida privada – as casas, os quartos alugados – se tornam dispositivos de isolamento e esclusão – social, humana – favorecendo o delírio das personagens, como no conto “Alguma coisa urgentemente”, do qual Murilo Salles fez uma adaptação cinematográfica magnífica. 

E ainda os aeroportos, as rodoviárias, os meios de transportes, os hotéis. Os não-lugares.

É talvez numa improvável articulação entre os não-lugares teorizados por Marc Augé e as heterotopias de Foucault que se tece a visão dos lugares nas narrativas de Noll. E também a visão de um Brasil desbotado, traçado com lápis, rarefacto. Um Brasil despido de qualquer forma de exotismo, ora mergulhado no luto da época pós-ditadura, ora suspenso na balança do ‘desenvolvimento’ mundial. Apesar de banal, perguntaria ao Noll se para ele queria dizer alguma coisa ser um escritor brasileiro. Mas aposto que em lugar dele, responderia, talvez, o narrador de Lorde: «Eu estava representando mesmo o Brasil?».

Gostava de ouvir o Noll falar do cinema, do papel da imagem em seu estilo de narrar, um papel que Murilo Salles e Suzana Amaral captaram de modo brilhante. Gostava de ouvi-lo sobre a música, outra paixão e obsessão tanto que em seus textos há verdadeiras bandas sonoras.

Lugares, imagens, ritmo. Mas também personagens exiladas do seu passado; identidades obscuras; corpos doentes, mutilados, corpos precários que porém, como demonstra Aquiles Alencar Bryner, se tornam ‘centro’ da perceção do mundo. 

Gostava de lhe perguntar se costumava ler as traduções de seus livros. E de lhe dizer que traduzi-lo significou para mim tentar devolver na minha língua aquela «pele poética do texto ficcional que de alguma forma redime essa canga da ação que é colocada no pescoço do narrador»(1).

Significou também ler e reler a solidão continental do tempo que todos vivemos.

Solidão continental… Tinha mesmo de ser seu último romance.

Gostava de lhe dizer que «… um dia eu esperava entender por que foi que tudo aconteceu».

(1) João Gilberto Noll, “A experiência da ficção”, Luso-Brazilian Review 48 (2), 2011, p.1.

Jessica Falconi

Ilustração: João Concha

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre em 1946. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou a viver até 1986. Colaborou com diversos jornais, entre os quais a Folha da Manhã, Última Hora, Folha de S.Paulo e Correio Braziliense. Publicou o seu primeiro livro de contos, O Cego e a Dançarina, em 1980. A partir de então, publicou diversos romances e outras coletâneas de contos. O seu último romance, Solidão Continental, saiu em 2012. Foi galardoado 4 vezes com o prêmio Jabuti e com o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de ficção, em 2004. Os seus livros foram traduzidos para inglês, espanhol, italiano. Morreu em Porto Alegre a 28 de março de 2017.

 

João Gilberto Noll was born in Porto Alegre in 1946, and moved to Rio de Janeiro, where he lived until 1986. He collaborated with several Brazilian newspapers, among them a Folha da Manhã, Última Hora, Folha de S.Paulo and Correio Braziliense. He published he first short stories’ book, O Cego e a Dançarina, in 1980. After that, he published several novels and other short stories’ collections. His last novel, Solidão Continental, was out in 2012. He received four times the prize Jabuti in Brazil, and also awarded a prize from Academia Brasileira de Letras, in 2004. His books were translated to English, Spanish, and Italian. He died in Porto Alegre in 28th March 2017. 

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